Alguns utensílios agrícolas

A António Manuel Pires Cabral

Podoa

Corta em asa, intensa e
oblíqua, onde a mão humana.

Não tem ideias, porém
a mão a torna calculada.

Então a vida sobre
o instantâneo suporte abre caminho.

A vida contra a vida re-
partida à espera de re-ser.

E também simbólica, frontal
a turvas ideias.

Enxada

Olhos em bico revelando
o que na terra há de sol.

E a terra no desvinco
em treme-luz de insectos lhe responde.

Como ela cospe inter-
mitente raiva acumulada!

Uma luta feroz com a relva
de emaranhadas intenções.

À noite, no silêncio emoliente,
tens o ar de uma deusa multimãe.

Tractor

Cantas na ravina
a vitória do homem sobre o tempo.

Cantas com raiva
na ravina.

Pulmão de aço entre
a poeira secular e o vinho novo.

Dobras-te sobre a terra
de rijo ventre destroçado.

Núpcias de fogo
sob este céu de zinco pingando.

Forquilha

Dócil é a palha
em seus dedos de ferro.

O estrume resiste inutilmente,
desgrenhado e puro de um belo destino.

Une e desune, diabólica
e humilde, até ao ciclo

iminente da planta.
Vê-se depois num feixe de vergônteas

o desenho da vida. Eis
uma canção com a forma de mão.

Escada

Duas ideias que se aprumassem
ao pé da árvore

com lisas dúvidas transversais
de espaço a espaço

não é decerto uma prova
do poder do homem e talvez

ir colher ou levar
um fruto antecede o fruto

ela aí está rente aos olhos
tentação ou não para Eva

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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