25 de Abril de 1974 por Vieira da Silva
25 de Abril de 1974 por Vieira da Silva

I

Dizer-te amor que a amendoeira do cômoro floriu
de novo e os belos cravos da nossa janela
se debruçam agora das palavras
eis uma verdade que tu compreendes melhor do que ninguém
tu que me ajudaste a levantar um pouco da noite
para pétala a pétala construirmos o tempo
a amendoeira floriu e a nossa casa ergue-se
ao lado das outras com sua nuvem acesa
o pensamento varado de azul misturando-se com a chuva
trepando às árvores pondo uma flor em cada coisa

II

Este país de sonhadores parece ter acordado.
Dizem que um dia em Sagres o Infante bebeu o infinito,
Deus ou o Mundo, e nos intervalos da digestão
mandou caravelas para a África. Foi assim
que o Sonho começou. Sonho com suas estrelas
e grandes bandeiras ensanguentadas,
com homens, sim, que heroica e ironicamente
urinavam nas faces da morte,
com homens também que disputavam ao fogo o poder de destruir.
O grande império lá se foi dilatando,
enquanto na ocidental praia lusitana o Sonho
era comido aos bocadinhos suculentos por uns tantos
senhores de golinha e unhas afiadas.
E foi assim que o Sonho continuou. Cada vez mais pequeno
até que.

III

Portugal acordou. Num homem a dormir o abutre
emprega facilmente a sua garra; quando o homem acorda,
sente mais dificuldade, como é natural, mas.
Isto quer dizer que não estamos seguros, enquanto
os abutres existirem.
Eles tremem agora nos galhos do seu pavor,
eles que se juntavam em festim à volta das nossas ideias.
Vede-os: tremem só. Asas caídas e bico ofegante,
projetam ainda a sua sombra.
Fora com os abutres, desde a ave
ao industrial de rapina.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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