O jogo popular. Que futuro?

Crianças a brincar
Crianças a brincar

Se dividirmos os jogos populares em físicos, mentais e artísticos, caso respectivamente da malha, adivinhas e desgarradas, temos de reconhecer que os primeiros são os que mais se têm identificado como jogos, quer a nível de estudos, quer da animação sociocultural. E sobre esses direi que, mais que os outros, têm perdido exuberância e expansão, sobretudo a partir de cerca do início do último quartel do século XX. Refiro-me aos de jovens e adultos, já que as crianças continuam e continuarão a brincar, isto é, a jogar, nas ruas e caminhos, à volta dum chafariz, nos recreios das escolas, por vezes à entrada dum mercado, até nos passeios e elevadores de vilas e cidades. O jogo das crianças é espontâneo e promove o seu próprio desenvolvimento psíquico e social.

Quanto a jovens e adultos, a prática lúdica vem-se de facto alterando, não só pela atracção que sobre eles exerce o desporto (que não é jogo popular tradicional, pois é fundamentalmente uma expressão de cultura, à margem de dirigismos e internacionalizações que, a nível local e regional, não teriam sentido em relação às variantes simbólicas e competitivas dum só jogo, como o Eixo e a Cavaca-Moedas, Chavelho), mas também as máquinas electrónicas de jogo, as discotecas, a Internet, passeios de automóvel e frequência de cafés. Nestes praticam-se jogos populares, sim, mas não de ar livre, como as cartas, damas e dominó sobretudo, vendo-se cada vez menos à porta, pelas aldeias e bairros periféricos das cidades, as caixas de Burro, o que se deve sem dúvida ao crescente tráfego rodoviário. Mesmo ao serão familiar, os jogos cederam o lugar à televisão: os jovens preferem ir dar uma volta e os outros, crianças e adultos, ficam-se por ali, quantas vezes em completa pasmaceira, até adormecerem, sem na maioria dos casos darem ao menos uma vista de olhos a livros, jornais e revistas.

Dir-me-ão que traço um quadro muito cinzento da prática lúdica, da nossa cultura, das diferenças regionais, isto sem pôr a tónica nas dificuldades que também atravessam as bandas filarmónicas, os ranchos folclóricos e o teatro popular. Em tempo de globalizações a cultura que identifica as comunidades está de facto ameaçada. Que futuro para ela? Remédios? Em primeiro lugar, penso que a história da humanidade deve seguir o seu curso natural, pois atrás de tempo tempo vem. O futuro depende de todos nós e é da nossa vontade inteligente que o remédio há-de sair. Para já, é urgente tomar boa consciência da nossa identidade comunitária, uma identidade que só se cumprirá, abrindo-se às outras, em nome da liberdade racional, sem entrar em conflitos desestabilizantes. Mas é também necessário reconhecer que, se uma prática lúdica envelheceu, por não se adequar ao movimento da história, pouco ou nada há a fazer. Pode ressurgir, um dia. Pode. O futuro é imprevisível, embora seja necessário acentuá-lo: ele depende de nós. A cultura não é globalizável.

in Semanário Transmontano (26 de Julho de 2002)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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