Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam
Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam

UM HOMEM EMBRIAGA-SE
quando tem muito que dizer e pouco ou nada que fazer. Pelo menos nesta aldeia é assim. Entra ele em casa, olé, rosas por todo o corpo, aproxima duas cadeiras e diz à mulher: estou bêbedo. Ela obedeceu. E uma osga, toda olhos, suspendeu a travessia da cal.

EU QUERO PEDIR À EMBRIAGUEZ QUE ME FAÇA ESQUECER QUE NUNCA SABEREMOS NADA
– disse-o Omar Kahayyám, poeta persa do séc. XII. A razão perde-se no labirinto e só o coração irá encontrar a saída. No antes e no depois foi sempre assim, mau grado a sabedoria dos juízes, sejam eles quais forem. Que é como quem diz: o coração tem razões que a razão desconhece.

QUE SABEDORIA
é a não sabedoria? E o amor, ó Salomão do Cântico Maior, se também é verdade: OS TEUS SEIOS SÃO MAIS DOCES DO QUE O VINHO? Ou a verdade conjunta: VINHO E O TEU ALAÚDE DE CORDAS DE SEDA, Ó MINHA BEM-AMADA? – ainda Khayyám. A verdade evola-se neste perfume.

O VINHO
é um modo de ser de quem perdeu um modo de ser. Entra-se num pardieiro e as mãos acariciam as paredes das Capelas Imperfeitas – nada te salvaria se não desses a mão à ilusão, percorrendo o mundo dentro de ti próprio, impedido que estão de o saber.

A OSGA TEM UNS OLHOS MARAVILHOSOS
A despeito disso, é repelente. Aquela mulher e aquele homem ouviram-na, quando faziam amor antes de nascer o sol. O vinho no Douro, este ano, é muito, lá isso é, mas vende-se ao preço da chuva. Está a chover, homem, vamos para o quintal, ao menos toma-se banho de borla.

DESCERAM AS ESCADAS
até à chuva. Nas rosas vermelhas do patamar ia-se extinguindo o lume em trânsito pontual para o coração da ramada próxima.

À NOITE, ELA,
que tinha bebido um copito a mais, propôs ao marido que não saísse e fechasse mesmo a televisão: poupava-se energia e aquilo tresandava a futebol de ricos em todos os canais. Não demorasse a ir para a cama. Prometia-lhe o reino celestial enquanto diabo esfrega um olho. Alaúde de sedas.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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