Oito dias de nevoeiro

Covas do Douro VI

Continuamos sob o nevoeiro
mas sabemos que o sol anda na serra
e encosta a face morna à virgindade das coisas,
tocando-a com um hálito muito doce.

Aqui estamos sob um tecto mole,
chumbo respirado ou a carne
dum monstro espacial.
Os lavradores assobiam para dentro
e os mais necessitados
engolem os projectos com a saliva.

Claro que ninguém tem culpa.
Assim fosse no resto. Mas custa
estar, há oito dias, sob esta pata
viscosa, esta enorme sanguessuga
que chupa até os tegumentos da alma.

É como se estivéssemos debaixo
dum telhado prestes a cair.
As crianças arqueiam os ombros;
põem as mãos nos bolsos, à semelhança
de isqueiros avariados nas gavetas;
passam indiferentes pelos gatos,
pelos pardais, e entristecem.

Ontem sabemos que um avião
deslizou por cima do visco.
Era uma voz coada, nasal,
proveniente dum outro mundo,
dum mundo que suavemente se consome
nas imensas fogueiras da luz.

Um avião passou sobre as nossas cabeças.
Paris? Amesterdão? Londres? Berlim?
Passou, talvez, para outro nevoeiro.
Mas passou, e lá dentro
havia, pelo menos, a certeza
de que o nevoeiro é um fenómeno

tão natural como duzentos contos
ganhos na assinatura dum contrato.
Nós aqui mal respiramos, nesta rampa
inclinada para o rio;
nesta rampa onde os músculos
não obedecem à vontade.

Aqui o nevoeiro é a vontade.
Pouca gente trabalha.
Os pardais e as crianças andam tristes.
Valha-nos Deus
e um caldinho de cebola bem quente.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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