Reis ou Janeiras

Os Reis ou Janeiras cantam-se normalmente entre os dias 1 e 6 de Janeiro, sendo este o dia em que se comemora liturgicamente a Epifania do Senhor, que é a manifestação do Menino recém-nascido. Há, porém, lugares onde o costume tem o seu começo logo a partir do Natal, o que de resto proporciona mais oportunidades de visita às diversas famílias.

O costume é antigo e pode aqui registar-se, por exemplo, o ano de 1892 em que João Alves, músico autodidacta, organizou um grupo em Ovar para ir dar as boas-festas, com versos de António Dias Simões, a casa de pessoas notáveis, mesmo se «cai a neve regelante/ sobre as nossas cabecinhas». 1

Cantar os Reis evoca os Reis Magos que, segundo uma tradição, mais ou menos fantasiosa, se chamavam Baltasar, Gaspar e Belchior, sendo este negro, e vindos do Oriente, juntaram as suas comitivas para conjuntamente adorarem o Menino, oferecendo-lhe ouro, incenso e mirra. Se eles ofereceram presentes, os reiseiros, sentindo-se imbuídos do espírito e necessidades do Menino Jesus, solicitam-nos também. É uma explicação possível do costume. Outra junta às celebrações epifânicas a ideia de dar a boa nova natalícia em termos festivos, em troca de alguma recompensa.

Também se diz cantar as Janeiras e, nesse caso, que não anula as intenções anteriores, poder-se-á dizer que se tem mais em vista saudar as famílias, de porta em porta, desejando-lhes um bom ano novo. Uso, aliás, que corresponde ao envio de postais ilustrados. E é na saudação de certa forma interesseira, que tem cabimento o fazer remontar o costume às Saturnais dos tempos romanos, em Dezembro. Saturno era tido por um Deus pródigo, justo e prazenteiro e as classes desfavorecidas, que então se entregavam a divertimentos mais ou menos licenciosos, eram contempladas quase obrigatoriamente pela gente endinheirada com favores importantes, com a dispensa total ou parcial de rendas atrasadas.

Esta explicação traz o sabor da interpretação mítica da atitude festiva pelo recurso às ideias de imitação de um modelo exemplar e inserção num tempo original. Mas, no caso dos Reis ou Janeiras, não se poderia mais razoavelmente pensar nesses vagabundos intelectuais que eram os clérigos goliardos, os quais, pelo século XII, primavam em andar na pedinchice folgazã? Ou então nos frades mendicantes que no século XIII e seguintes calcorreavam as povoações em busca de sustento? Ainda hoje se chama mendicante a um indivíduo que não gosta de trabalhar… Mas, etimologicamente, mendicante é o que mendiga, como reiseiros e janeireiros fazem de certo modo, embora tenhamos de convir em que a intenção lúdica e a motivação folclórico-religiosa sejam predominantes.

 

A tradição é de qualquer forma muito interessante e pouca gente será insensível à beleza do quadro de meia dúzia de pessoas, acompanhadas ou não de instrumentos musicais, a cantarem pitorescas redondilhas em noite regelante:

Estas casas são bem altas,
forradas de papelão.
O senhor que mora nelas
é um grande cidadão.

Ou:

Quem diremos nós que viva
no ramo da salsa crua?
Viva a menina Sofia
que alumia toda a rua.

A poesia e a música acendem-se na noite. Como pirilampos. Que ritmo em algumas quadras!:

As boas festas
dadas, à preta,
dadas no rufo da pandeireta.

Quem não guarda o sabor daqueles figos com nozes, molhadinhos com vinho da pichorra?…

Mas os embaixadores do Menino ou chamareleiros de vida nova, às vezes, têm vozinha de urtiga:

Cantamos e descantamos,
tornamos a descantar:
estes barbas de farelo
não têm nada que nos dar.

A sátira na consciência dos direitos, como nas velhas saturnais ou cantigas truculentas de goliardo.

Nas ruínas do mosteiro de Salzedas (Tarouca) e em outros sítios o canto de porta em porta deu origem a serões onde os ranchos folclóricos cantam horas a fio, revezando-se para uma sanduíche e um copito [ver vídeo]. Um espectáculo bonito, diga-se, que todavia não tem a frescura e o encanto das embaixadas nocturnas até junto de uma porta de onde venha um fio de luz.

  1. Conf. Zagalo dos Santos – Notícias de Ovar (5 de Janeiro de 1960)
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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