Sábado em Setembro

Hotel Universal, Pedras Salgadas
Hotel Universal, Pedras Salgadas
Pedras Salgadas

 

Que seria da luz se não houvesse tantos silêncios
incontidos? Contornamos a povoação
de mãos dadas com um voo inclinado de estorninhos.
A tarde perto do fim.
E chegamos finalmente ao parque das Pedras Salgadas.
Setembro até à cintura. Quase ninguém.
E um resto de água estagnada no rio Avelames.
Foi assim que eu e tu numa janela ferida,
nas casas desabitadas, nas folhas que iam sobrando
ou nas bolhas de água de campânula em campânula
nos reconciliámos com o tempo.
Os esquilos cruzam-se à nossa frente: os teus
passos a transbordar, antes de lá chegarmos.

Vamos entender-nos: o isolamento de Rilke
no castelo de Duíno é outra coisa: o mar
protegia-o dos rochedos, perfume de palavras
no tinteiro argênteo e um anjo a florir
na jarra da escrivaninha. Quem disse que o eremita,
poeta ou não, escava sempre, sempre, a sua pobre
ilusão numa laranja?

Embrenhamo-nos agora no eremitério
de cobras e morcegos onde ainda se lê
Hotel Universal, telhado a cair sob o peso que sobe
de velhos salões onde foram as sacratíssimas
bodas do nosso casamento. Até onde iremos
com esta dúvida, as elegias de Duíno
debaixo do braço?

Talvez o caminho mais curto para o coração
de uma coisa consista em despovoá-la
da sua memória. De facto, a poesia é o esplendor da
verdade que nunca é a mesma coisa em dois momentos
contíguos, aqui ou no Bois de Boulogne.
Não, não é aconselhável ver símbolos por toda
a parte: o Universal tem telhados a mais e as
silvas são tão necessárias como um arranhão
na pele. Não prestaremos culto a nenhum deus que
caiba dentro do caracol. A época das chuvas
aproxima-se, ó Avelames.

inédito (2003)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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