Jogo das escondidas
Jogo das escondidas

“O que percorre esses textos, breves, rimados, e sobretudo sonoros e ritmados, é a euforia da linguagem, mais até do que a da língua; é o prazer da palavra, que se compõe ou decompõe, que se opõe ou se associa, que imita ou obstrui, que se encadeia, ou se suspende, ou se desvia, ou se prolonga; que descobre ou desafia. Para as crianças, a palavra é, já foi dito, um dos primeiros brinquedos, que se presta a uma “criatividade infinita”, e que não custa mais do que o esforço do jogo ou da articulação”.

– Arnaldo Saraiva

1. Lengalengas para o Jogo das Escondidas

Serrubico, bico, bico,
quem te deu tamanho bico?
Foi o padre da botelha,
a jogar a sobrancelha.
Sobrancelha miudinha
como a pulga da balança
dá um pulo até França.
Os cavalos a correr,
as meninas a aprender.
Qual será a mais bonita
que se irá esconder?

Ou:

Bico, bico,
sarabico,
que te fez
tamanho bico?
Foi a velha
açucareira
que anda à volta
da ribeira
aos ovinhos
de perdiz
prò menino
D. Luís
que tem macacos
no nariz.
Os cavalos
a correr
e as meninas
a aprender.
Qual será
a mais bonita
que se irá
esconder?

(Popular no Alto Alentejo)

Ou:

Argolinha pimpolinha
O rapaz que jogo faz?
Faz o jogo do malhão,
do malhão Manuel João.
Diz à velha do cordão
que arrecolha o seu pezinho:
‘stá coxinho de um dedinho.

(Também popular no Alto Alentejo. Variou-se intencionalmente a medida dos versos das últimas parlendas, para efeito de comparação.)

2. Lengalenga para o Jogo do Gato e do Rato

Na modalidade em que a roda das crianças, com o “rato” dentro, ora gira para um lado ora para o outro, estabelece-se entre o “gato” e a “roda” o seguinte diálogo abrasileirado:

– Seu ratinho está em casa?
– Não, senhor.
– A que horas voltará?
– À meia-noite.
– Que horas são?
– Uma hora.
– Que horas são?
– Duas horas

O diálogo continua com perguntas e respostas semelhantes às últimas, até à hora combinada para o “rato” fugir. Então a roda para e o diálogo continua:

– Seu ratinho está em casa?
– Está, sim, senhor.
– Dá licença para entrar?
– Pois não.

O “gato” começa a perseguir o “rato”.

3. Lengalengas para a Cabra Cega

– Cabra cega, donde vens?
– Do moinho.
– E que trazes?
– Pão e vinho.
– Dás-me um bocadinho?
– Não.

Ou:

– Cabra cega, donde vens?
– Das malhadas.
– E que vens buscar?
– Um par de arrochadas.

Ou:

– Cabra cega, donde vens?
– De Castela.
– Que trazes na cesta?
– Pão e canela.
– Dás-me dela?
– Não é para mim, é prà minha velha.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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7 replies on “Lengalengas várias

  • LUIS ROBERTO MIRANDA

    Tenho 61 anos, meu avô (português) me ensinou assim:
    Bico bico salderico
    Deus te deu tamanho bico
    Meu compadre da Botelha
    Foi jogar a sanfrancelha
    Sanfrancelha vai ao rondo
    Lá se vai o sol se pondo
    Lá te calha sua vez
    Se é de ouro, se é de prata
    Manda ao reino vai a lata

  • LUIS ROBERTO MIRANDA

    Boa noite!
    Ainda falando sobre os versos do “Bico bico salderico” que meu avô João Maria Regalado nos ensinou quando crianças.
    Conforme recitava, a cada sílaba, beliscava levemente os nós dos dedos, de nossas mãos, que estavam sobre a mesa e o dedo que coincidisse com a última sílaba do verso seria flexionado, se escondendo sob a mão. A criança que na roda dos versos tivesse os dedos de suas mãos primeiramente escondidos ganhava o jogo. E assim brincando com aquele adulto, velho e carinhoso, aprendiamos os versos, encantados, para o resto de nossas vidas!

    • Admin

      Caro Luís,

      Mais uma vez muito obrigado pela partilha!

      Uma das variantes deste jogo popular recolhidas por António Cabral em ‘Jogos populares infantis’, aquela que é mais parecida com a que o Luís descreve, desenrola-se da seguinte maneira:

      “As crianças fazem uma roda, sentadas, com as duas mãos postas em cima do joelho ou sobre uma mesa, estando as costas das mãos voltadas para cima. Uma das crianças, com os dedos indicador e polegar direitos, belisca levemente a pele das mãos das outras crianças, sucessivamente, dizendo:

      Serrubico, bico, bico,
      quem te deu tamanho bico?
      Foi a pomba da balança.
      Põe-te em França.

      A mão da criança em quem recair a última sílaba da cantilena deve ser posta no sovaco, aconchegando-a o mais possível para aquecer. E assim, sucessivamente, até as mãos de todas as crianças estarem escondidas. O jogador que pronunciou a lengalenga pergunta:

      – Quem tem pão quente?

      A criança que achar que tem a mão quente mostra-a ao perguntador, que a verifica. Se estiver quente, é autorizada a sair do sovaco; se estiver fria, apanha uma palmada, voltando ao mesmo sítio.”

      Esta variante praticava-se (pratica-se?) em localidades de Trás-os-Montes, em Portugal. Seria interessante saber de onde era o seu avô!

  • LUIS ROBERTO MIRANDA

    Boa noite!
    Meu avô e minha avó vieram novos para o Brasil. Tenho pouca informação sobre minha família portuguesa. Meu avô era do Concelho de Vagos – Aveiro, minha avó da praia de Mira – Coimbra!
    Meu avô tinha por ofício a Carpintaria e Marcenaria, tocava viola, declamava poesias, e contava histórias infantis para os netos. Foi meu grande exemplo, além de meu pai. Estou muito feliz em falar com vocês. Entrei no site sem saber que era português.
    Beijo e abraço carinhoso a toda nação portuguesa. Tenho muito orgulho de minha ascendência.

  • LUIS ROBERTO MIRANDA

    Bico bico salderico
    Deus te deu tamanho bico
    Meu compadre da Botelha
    Foi jogar a sanfrancelha Sanfrancelha vai ao rondo
    Lá se vai o sol se pondo
    *Pelo rio da malavez
    Lá te calha sua vez
    Se é de ouro, se é de prata Manda ao reino vai a lata

    *Pelo rio da malavez
    Acrescentei pois ao conversar com uma prima ela se lembrou desta frase.

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