A confraria gastronómica D. Leitão

Como sei de uma confraria etnogastronómica (Os Pyjamantes – tema já em agenda) que assina o ponto uma vez por ano, comendo-se e bebendo-se, cantando-se, contando-se, não digo para o ano inteiro, mas quase, despertou-me a atenção um texto gaiato que acabo de ler numa fresca revistinha de Pampilhosa do Botão. A dos caminhos de ferro, a que fica ali a dois passos pantagruélicos de Coimbra. Pantagruélicos, pois – de Pantagruel, aquele herói do francês Rabelais (séc. XVI) que gostava de mesa lauta e vinhos cintilantes. Hedonista e epicurista, no sentido dos regalos gastronómicos que tais qualificações podem assumir por aqueles que gostam de puxar a filosofia à sua brasa, ou melhor, de puxar a brasa ao seu leitão.

Há filósofos de barbas brancas a dizerem que não, nada disso, como Platão que quase endeusa a temperança (“sofrosine”) e Aristóteles que põe a sabedoria nos píncaros da lua – a felicidade, ou perfeição deleitosa, consiste em regular a vida pela razão, apelando as regras ao meio termo, à justa medida (“mesotes”), caso, já se vê, da tal temperança ou moderação. Isto para não falar dos Santos Padres de antanho que fingiam esquecer-se dos banquetes de Salomão e do seu finíssimo gosto poético em que a beleza é conotada com o vinho: “O teu umbigo é uma taça redonda cheia de vinho perfumado “ (Cântico dos Cânticos 7,3).

Pedro Costa, que presume nunca ter existido uma confraria dedicada ao bom leitão, é que não está com meias medidas e escarrapacha esta apetitosa proposta no final de um escrito seu: “Vamos pois tratar de fazer nascer a Confraria Gastronómica D. Leitão, a Tertúlia dos apreciadores do Leitão Assado à moda da Bairrada”.1 Saúda ele as confrarias báquicas e gastronómicas, as quais devem multiplicar-se, afirma, para “bem da nossa cultura e da nossa saúde. Comer é cada vez mais um acto de cultura e dos mais ricos que temos para oferecer “ (…).

“Portugal tem três produtos de dimensão internacional: o Vinho do Porto, o Queijo da Serra e o Leitão da Bairrada (não necessariamente por esta ordem)”.

Quanto ao leitão da Bairrada, uma coisa é certa (e só quem não percebe): ele situa-se entre as iguarias mais apetitosas do país, cuja fama saltou mesmo para lá dos Pirinéus. Ainda que existam por aí “umas cópias anafadas que se fazem passar por, mas que não o são“. P. Costa, um especialista de gestão e técnica hoteleiras (Coimbra), é mesmo categórico: “Portugal tem três produtos de dimensão internacional: o Vinho do Porto, o Queijo da Serra e o Leitão da Bairrada (não necessariamente por esta ordem) “.

Muita gente está de acordo com Pedro Costa, eu inclusive. que já “visitei” vários dos quarenta e um restaurantes e casas de pasto da estrada nacional número 1, antes e depois da Mealhada, ficando da última vez algo combalido por não ter sabido resistir àquela pele tostadinha e estaladiça. Confortei-me com o provérbio: “O leitão e os ovos dos velhos fazem novos.“ E sorri com um outro: “Boa carne é a perdiz. Se o porco avoasse, não havia carne que lhe chegasse”. 2 Quando, no dia seguinte, bebia um quarto de águas, lembrei-me da Odisseia, de Homero (rapsódia XIV): em Ítaca, o porqueiro Eumeu, para homenagear Ulisses com um repasto de truz, matou o melhor porco, o qual tinha nem mais nem menos que cinco anos. Cinco! – idade a que os marranos portugueses pelo visto nunca chegam, a não ser nalgum presunto que ficasse esquecido na trave de uma loja, já lorado de carneiritos e que – palavra de quem provou -, depois de limpinho é uma maravilha. Ora onde foi que eu ouvi ou li que a carne dos animais velhos é melhor para a saúde do que a dos novos? Será? Gostava de ouvir a propósito Santo Antão, sempre iconografado com um porquinho aos pés, mas tenho de tirar daí o sentido.

Verdade, verdadinha é que o leitão da Mealhada é um mimo e a prova é terem-se ali assado como média, em 1992, sete mil leitões por mês, no que vai de restaurantes. As alminhas dos celtas (foram eles, ao que parece, que trouxeram a moda do porco doméstico para a Península, no séc. VI a.C.) devem no outro mundo esfregar as mãozitas douradas, de contentes.

em Ítaca, o porqueiro Eumeu, para homenagear Ulisses com um repasto de truz, matou o melhor porco, o qual tinha nem mais nem menos que cinco anos. Cinco! – idade a que os marranos portugueses pelo visto nunca chegam, a não ser nalgum presunto que ficasse esquecido na trave de uma loja, já lorado de carneiritos

E já agora a receita:

Leitão (8 Kg. – vivo)
louro (q.b.)
alhos (3 cabeças)
banha ( 250 gr.)
sal (q.b.)
pimenta branca (50 gr.)
(vinho branco) (q.b.)
salsa (1 ramo)

Amanha-se, estona-se e raspa-se bem o leitão. Unta-se externamente com uma mistura de alhos pisados, banha, sal, louro e pimenta. Introduz-se também na barriga, cosendo-se de seguida com linhas fortes. Assa-se no forno da broa, enfiado no espeto de pau de loureiro e com a boca virada para o fundo. Por baixo, coloca-se uma pingadeira de barro para aparar o molho. Nos primeiros vinte minutos, roda-se ininterruptamente. Depois, passa-se à intermitência. Deve ficar bem tostado e considera-se assado quando o leitão deixar de rodar com o espeto (cerca de 1h30). Borrifa-se (“constipa-se”) de vez em quando com vinho branco, no caso de o forno estar muito quente. Para isso usa-se o raminho de salsa. Retira-se do espeto e abrem-se os fios da barriga com uma faca. Verte-se quantidade suficiente de vinho branco na barriga, agitando-se. Despeja-se o conteúdo pelo orifício do rabo. Saborear religiosamente! 3

Se Pantagruel encontrasse disto na ilha da “Dive Bouteille”, esta dir-lhe-ia com toda a razão: come e bebe, pá, e deixa-te de conversa fiada. E, como as cópias modernas de Pantagruel abundam, aconselha-se Pedro Costa a que vá redigindo os estatutos da Confraria Gastronómica D. Leitão.

  1. In Pampilhosa uma terra e um povo, revista do GEPEDA, no 13, Junho de 1994
  2. Op. cit., no11, texto de Noémia Leitão e José Machado Lopes
  3. Id, no 11 e 13
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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