À sombra das amendoeiras em flor

Almendra, nome de amêndoa,
perfume de amendoeira.
Se não voltasse a Almendra,
suspirava a vida inteira.

É assim. Quem anda longe da sua terra não sossega enquanto não regressar, mesmo numas curtas férias. Como um “brasileiro” que eu conheci na minha aldeia: “Aqui sinto-me no Reino da Glória”. Ou Guerra Junqueiro: “ai há quantos anos…”

As amendoeiras ficam na memória mormente se estão em flor. Também eu escrevi há anos, anos:

As amendoeiras
passam um recibo cândido à terra.
Página acesa de iluminuras.
(Contrastam os olhos com tanta superfície).
1

Dão-se bem por todo o Alto Douro, a não ser nas zonas mais frias, que lhe afectam o florescimento, e nos sítios muito chegados ao rio e que o sobreaquecimento contraria a frutificação. Proverbial é a amendoeira da Quinta de Roriz que ainda se compara a quem não cumpre o que promete: “esse é como a amendoeira de Roriz, promete muito e não dá nada”. Ora toma.

Amendoeiras em flor no Douro, por Gail at Large
Amendoeiras em flor no Douro, por Gail at Large

A nossa região (ou antes, sub-região da região de Trás-os-Montes e Alto Douro) beneficia dum clima mediterrânico e os anteparos do Marão e de Montemuro entre outras montanhas protectoras. Mas é no Cima Corgo, principalmente a partir dos rios Távora e Pinhão, e mais ainda no Douro Superior, que as amendoeiras se cultivam em grandes áreas. Ou antes, cultivavam; cultivavam-se mais do que agora. Após 1973, sobretudo, ano em que a pipa de uva para vinho generoso atingiu preços aliciantes (então de catorze contos – compara-se com o de 2002, a duzentos e trinta e tal, em média), as amendoeiras, que aliás não são de primeira necessidade como as oliveiras, subalternizaram-se. E, ante a febre da vitivinicultura, muitas foram arrancadas para lenha, aliás de boa qualidade, e outras foram transferidas para bordadura das vinhas, nem aí acabando por ter sorte, pois os viticultores, verificando que as videiras não se davam com a sua proximidade, puseram-se a arrancá-las também. “Videira à sombra de amendoeira não medra“ – ouviu-se muitas vezes e eu sei-o por experiência. É no Douro Superior e terras adjacentes que a amendoeira hoje mais se preserva a cultiva, apesar de a amêndoa nas suas variedades, tanto a de casca rija como a molar, não se vender actualmente a um preço atraente. Vai-se cultivando, todavia, e, dado que o vinho de mesa atravessa horas difíceis, há mesmo quem as reponha, a fim de diversificar o rendimento, juntamente com outras árvores de fruto, com relevo para cerejeiras, nogueiras e castanheiros 2.

No Douro Superior, a montante de Foz Tua, os municípios têm realizado acções de carácter cultural e promocional em que avultam feiras típicas, actuações de bandas filarmónicas e ranchos folclóricos, a gastronomia com destaque para a já rica doçaria de amêndoa e provas de vinhos como não podia deixar de ser, desporto motorizado por montes e vales, ao lado de passeios turísticos, captando cada vez mais excursões para uma rota policrómica das amendoeiras em flor. Não faltam de caminho as visitas ao Cachão da Valeira e miradouro de S. Salvador do Mundo, Castelo de Numão, gravuras paleolíticas do Côa, aldeia histórica de Castelo Rodrigo, o recanto bucólico de Barca d’Alva, Penedo Durão, Torre do Galo em Freixo de Espada à Cinta, Castelo de Mogadouro, Solar de Vilares da Vilariça, Igreja Matriz de Moncorvo, Santuário da Assunção em Vilas Boas e ruínas do Castelo de Carrazeda de Ansiães. Tudo isto à sombra das amendoeiras em flor 3.

in Notícias de Vila Real, 12 de Março de 2003

  1. Ver do autor Antologia dos Poemas Durienses, Tartaruga, Porto, 1999, págs. 174 e 140.
  2. A castanha foi uma das bases da alimentação até a batata se impor. Recordem-se a propósito os topónimos, entre outros, de Castanheiro (do Norte e do Sul) e de Castedo (de Alijó e de Moncorvo) – Castanhedo – Castaedo – Casteado – Castedo
  3. O título do texto é sugerido por um outro de Marcel Proust: “À Sombra das Raparigas em Flor”. Não lhes parece que a amendoeira florida tem algo de rapariga? Como perceber que a videira não gosta da sua sombra? Sim, a sombra é outra pois.
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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