As nossas aldeias

Aldeia de Trás-os-Montes, por Luís Borges
Aldeia de Trás-os-Montes, por Luís Borges

Ainda não sabias que forma de consolação te iria esperar, ao embrenhares-te pela montanha, de aldeia em aldeia. Estava frio e por ali andava-se aos cogumelos, andava toda a gente. Somos todos cogumelos. E comestíveis, afiança-te o pára-brisas do carro. Ai as nossas aldeias exíguas, as nossas aldeias conspícuas, as nossas aldeias oblíquas! As nossas aldeias. Serranas, amenas, ridículas, obscenas, ubíquas. À noite dormiria contigo a cena do entardecer que presenciaste nesse dia de campanha eleitoral: uma caravana a passar junto de certa casa, alguém a bater ao postigo e a vir de lá uma voz compungida: Nossenhor o favoreça, agora não pode ser. Quem diria que nessa noite em que foram conhecidos os resultados das eleições viesse a acontecer aquilo? Fizeram uma caldeirada dos habitantes-cogumelos que foram opípara e meticulosamente deglutidos com outras iguarias. Durante alguns meses ainda se viu andar por ali o que havia neles de espírito de vegetação, isto é, o osso difícil de roer, até que, um a um, acabaram por se ir embora, para outras paragens de vento. Quem mo disse foi uma velhinha de séculos ao postigo do seu casinhoto. Que não foi nada assim, que não sobrou ali velha nenhuma, disse-me alguém. Seria uma bruxa, seria. O alguém vai instalar no abandonado e rumoroso casario um aldeamento turístico, um sonho, cada casa com uma árvore diferente ao lado das escadinhas: o pinheiro, o carvalho, a faia, a bétula, o castanheiro, and so on. Ouve-se ainda o violoncelo dos telhados. Fica-te essa consolação.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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