Homem-farrapo

Homem-farrapo, sejas tu quem fores,
Até na sepultura, estou contigo.
Abjuro o meu egoísmo e hoje, ofereço-te
A inviolada ternura desta página,
Magra flor, mas consciente, do meu cérebro.
Homem-farrapo, olhado e abandonado
Como um farrapo sórdido. Apareces
Na chuva ininterrupta das notícias,
Criado e recriado, a toda a hora.
Farrapo, sim: o que é um homem
Na cela dum aljube ou dum asilo?
Mas eu não te desprezo. Mão que não
Pode traçar um gesto independente,
Coração retorcido pela dor
De não ser o que os outros ultrapassam,
Ossos cantando fúnebres na pele…
Mendigo fedorento, velho inútil,
Soldado ludibriado, acorrentado,
Irmão negro, afastado como um cão.
Não te desprezo irmão, doido que sejas,
Pecador de olhos fundos como a noite,
Canceroso, leproso ou criminoso.
O teu retrato é o da mulher adúltera
E Deus o iluminou dentro da areia,
Enquanto os grandes, todos, debandavam.
Não te desprezo. E, nunca, as minhas mãos
Soltem a pedra: contra mim seria.
Homem, homem-farrapo, tu ensinas
A lição enigmática da vida.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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