Magustos

'Magusto' por Adriano Martins
'Magusto' por Adriano Martins

Quem entre o dia de Todos os Santos e o dia de S. Martinho, sobretudo neste, não participou num magusto em plena montanha, sentindo-se livre como um animal bravio, como ele cheio de olhos para as coisas em volta, a projectar uma sombra partilhada pelos convivas e pelo vento, bem pouco saberá do que é um magusto. O que não quer dizer que não goste de castanhas e vinho novo e não se sinta bem a saboreá-los numa adega, na rua ou num restaurante, em família, só ou com os amigos.

Dizem Jung, Bachelard e outros que no fundo de cada um de nós, lá onde as mãos diárias não chegam, se vão acumulando restos do passado não só individual mas também colectivo que se organizam em complexos e transparecem em imagens primordiais: de água – a ondina; de terra – o gnomo; de ar – a sílfide; de fogo – a salamandra. A memória da memória. Granulada. Gostos imperecíveis. Que voltam quando nos aproximamos das origens.

Porque é que toda a gente, sem excepção, sente apenas em certos momentos este ou aquele prazer em todo o seu esplendor? Como se o quotidiano fosse depositando em nós uma poeira compacta de onde tivéssemos necessidade de ressurgir como de um túmulo. No momento em que experimentamos a sensação de ressuscitar assumimo-nos como árvores que irrompessem de fundas raízes.

Porque é que os homens gostam de trepar aos Himalaias e olhar a imensidão, como se ouvissem o silêncio, ou de se embrenhar na Amazónia e ouvir os rumores infindáveis das coisas, como se os vissem?

Há alguns anos que não vou a um magusto na serra, ao pé dos castanheiros, ao pé do Grande Tempo…

O chefe do clã era o primeiro a subir e com a prata dos olhos devotamente rodada entre as mãos convocava o fogo dentre um punhado de ervas secas, depois vinham os outros e o chão coalhado de castanhas que as labaredas recebiam no ventre fulvo, dançavam à roda como abelhas e, já sentados, comungavam o fogo quando ele entrava nos pequenos corpos em delírio, no sumo fervente da uva que apazigua as bocas, evoé, evoé, no morro fronteiro havia também uma coluna de fumo e dois jovens amavam-se à sombra do espinheiro.

Acender uma fogueira, andar à volta dela, ouvir nos olhos as castanhas aquecerem no brasido e ir com eles de monte em monte, de nuvem em nuvem, sujar as mãos, beber a terra, a alma da terra, no vinho, por uma pichorra de barro, ainda, bonum vinum laetificat cor hominis, o vinho tem carícias de veludo, juntar a voz à dos companheiros, cantar e saltar a fogueira, quem salta, quem não salta, deixar que alguém nos pinte o rosto com um tição, entrar no jogo e estar nele, na festa, oh liberdade!

Há alguns anos que não vou a esse magusto e não sei bem do sabor agreste que atravessa a língua, se é do magusto a que assisti, a minha avó tinha um halo branco à volta das palavras e aconselhava-me, ao ver as mãos enegrecidas, a pôr mais sol na música, se é do gosto imperecível que volta, quando com os pés doridos nos aproximamos da origem. Mas então o magusto arde nesta página como os amantes do espinheiro e o chefe do clã no dia seguinte a dizer aos filhos de Andrómeda, a dos olhos doces, viera pala noite varrer as cinzas – entre o dia de Todos os Santos e o S. Martinho.

Acender uma fogueira, andar à volta dela, ouvir nos olhos as castanhas aquecerem no brasido e ir com eles de monte em monte, de nuvem em nuvem, sujar as mãos, beber a terra, a alma da terra, no vinho, por uma pichorra de barro, ainda, bonum vinum laetificat cor hominis, o vinho tem carícias de veludo, juntar a voz à dos companheiros, cantar e saltar a fogueira, quem salta, quem não salta, deixar que alguém nos pinte o rosto com um tição, entrar no jogo e estar nele, na festa, oh liberdade!

Comer meia dúzia de castanhas de um cartucho no Rossio ou no cruzamento de Santa Catarina e Passos Manuel não é, nunca será a mesma coisa.

De tempos a tempos temos necessidade de sacudir o homem velho que cresce dentro de nós. Um magusto pode dar-nos essa oportunidade. Bem melhor é limpar as mãos a uma nuvem do que a um guardanapo de papel reciclado.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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