Toda a cultura é simbólica. O que é preciso é estar atento ao significado dos símbolos. Vejamos alguns.

1. Os carnavais da sora Professora

Sobretudo nas aldeias, era interessante ver a ganapada em cortejo, a cantar e a tocar no que vinha à mão, rumando à escola onde a sora Professora (ou professor, claro) aguardava com sorrisinhos brilhantes. Por vezes, era pela Páscoa ou fim de ano lectivo. Em S. Lourenço de Riba Pinhão era no Carnaval. Ora pois, a oferta dum cabrito para ganhar forças para a Quaresma.

– Hoje já se não usa – dizem-me. – Os tempos são outros.

2. Pulhas, Casamentos e Partilha do Burro

Dois rapazes, empunhando cada qual um funil, “deitavam as pulhas” de pontos elevados no meio dos quais ficava a aldeia.

– Ó compadre, quem vamos hoje casar?
– A Chica dos Anéis.
– Porquê?
– Anda de conversado em conversado: ameaços de casamento, mas, à última da hora, nicles. Até consta que…
– Num digas. Vamo-la casar com o galo pedrês da tia Micas.

Coisas assim. Na Partilha do Burro, a Chica dos Anéis (ou o Chico, tanto faz) era muito bem capaz de ter uma parte do jumento mais atiçada. E até se punha a vida alheia no estendal – a mais censurável, está visto. Hoje na Partilha do Burro e nos Casamentos o costume amaciou, mas continua, brejeiro, como é o caso, por exemplo, de Campo de Jales.

3. O Pai da Carne (ou da Fartura)

Em Cheires (Alijó) e em Ervedosa (S. João da Pesqueira) chamam-lhe respectivamente Pai da Carne e Pai da Fartura. No Carnaval reina a fartura da carne, mas em tempos que já lá vão acabava aí, até à Páscoa, pois a Quaresma era tempo de abstinências.

Terça-Feira Gorda. Noite. A rapaziada (dantes sem a companhia das raparigas que hoje já vão no meio do farrancho) junta-se no adro da igreja: à frente, um a fazer de padre, outro de sacristão (com um lataréu de água a fingir de caldeirinha da água benta) e outros foliões munidos de velas ou coisa parecida; atrás um esquife com um velho feito de palha e armação de arames, matulão, a hastear um falo de ponta vermelhusca – objecto a não condizer com o possuidor. Malta a acompanhar pelas ruas e ruelas.

– Ai o meu Pai da Carne, coitadinho, que vai morrer!

Risos. Apupos.

No fim juntam-se no largo da aldeia. Mais algazarra. Procede-se às deixas ou testamento de velho e, terminada a cerimónia, queima-se o Pai da Carne (da Fartura), a começar pela parte refilona.
Não vamos aqui falar do significado deste eloquente uso carnavalesco. Que o leitor pense nisso. E pense também na nossa cultura e na necessidade de a conhecer e estimar.

in Notícias do Douro (28-2-2003)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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