O Padre Belarmino Afonso conta que, num dia 26 de Dezembro, chegou a Deilão (concelho de Bragança) para celebrar missa, ficando intrigado com os choros e grande barulheira que ouvia na rua. Suspeitando que se tratava de brincadeira dos rapazes da aldeia, acercou-se do local donde vinha a algazarra e pôde apreciar um simulacro lúdico de funeral em que os acompanhantes, com trejeitos bizarros, gritavam a bom gritar, gritos que traziam dentro de um riso de chacota e folia. Numa escada a servir de esquife via-se um rapaz, o morto, seguido de outro rapaz grotescamente vestido de padre que, com a seriedade possível, recitava um “reco eterno” (um requiem) de latim estropiado e ajustado à circunstância. De quando em quando, aspergia o infeliz com água benta, ou antes, com uma água qualquer tirada de um charco e posta num caldeiro velho.

Que se passava, afinal? O sacerdote veio a saber que o defunto fora arrancado ao seu sossego, atentatório da festa em que devia participar. A mimese do préstito fúnebre era a “sanção moral para o prevaricador, que não conseguiu passar uma noite sem dormir”.

“Temos de realçar o aspecto lúdico da festa, em especial da “Festa dos Rapazes” – escreve Belarmino Afonso, um estudioso dos costumes bragançanos, referindo-se a esta tradição da Petisqueira, Deilão, Vila Meã e Babe, do planalto da Lombada. Um curioso rito de passagem para a adolescência, bem pitoresco e que se mantém, enriquecido de variantes de aldeia para aldeia.

Ocorre a festa nos dias 25 e 26 de Dezembro, dias de Natal e de Santo Estevão, sabendo-se que dantes ocupava também o dia dos Santos Inocentes, e nela devem participar os rapazes com mais de doze anos. A mordomia compete aos chamados meirinhos, três por via da regra, substituídos em cada ano. O meirinho velho escolhe o meirinho novo e o substituto, sendo esta escolha seguida, em Vila Meã, por um “simulacro de votação que vem confirmar a escolha feita”. Só aos meirinhos pertence a coordenação das actividades. A não ser em Babe, também as raparigas participam na ceia, ponto alto da comemoração, seguida de baile. Os petiscos são da responsabilidade dos rapazes, que os pedem de porta em porta ou têm mesmo de os oferecer; mas em Vila Meã as raparigas dão uma ajudinha, confeccionando, por exemplo, as roscas – pão de trigo em forma estelar, coberto com clara de ovo.

O profano e o sagrado andam de mãos dadas nas mais características festas populares.

Em Deilão, o meirinho velho paga tradicionalmente a calaça – vinho e outras bebidas para os circunstantes. Dança-se alegremente até cerca das dezasseis horas. Nessa altura, como regista Belarmino Afonso, o altifalante anuncia que os meirinhos vão correr. Tudo conflui para o largo principal. Os rapazes soltam-se da moça e botam-se a correr. Correm três meirinhos. No seu encalço vai toda a outra juventude tentar apanhá-lo. Quando isto sucede vêm às carrinchas dos rapazes. Quando havia mais raparigas eram elas que traziam às costas os meirinhos. Quando são apanhados, vai ao seu encontro gaiteiro, bombo, ferrinhos e mais garotada. A animação começa a aquecer. “Toca gaiteiro, se não, não ganhas as castanhas”, dizem às vezes os assistentes para animar a festa.

 

Vila Meã persiste num único prémio da corrida: raparigas que trazem às costas o meirinho velho e o novo. Ora assim é mais bonito!

Não falta o enquadramento religioso à Festa dos Rapazes, dado o significado dos dias em que ela se realiza. Em Deilão os rapazes assistem à missa nos dias 25 e 26, e em Babe formam solenemente duas alas na igreja, sendo eles quem na procissão conduz o andor de Santo Estevão. O profano e o sagrado andam de mãos dadas nas mais características festas populares.

 

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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