Aqui, Douro

Ilustração de Nuno Barreto de 1961 para o poema "Aqui, Douro" (António Cabral)
Ilustração de Nuno Barreto de 1961 para o poema "Aqui, Douro" (António Cabral)

Aqui Douro. O Paraíso do vinho e do suor.
Dum rio no Verão ossudo e magro
como as pessoas,
quando a alma se escoa pelos poros;
rio também barrento, a cor da terra,
para que a alma seja inteira;
rio das grandes cheias, do abraço final
de troncos de homens, de árvores e sonhos;
dum rio agora jovem: a água demora
o seu espelho nas barragens, e os barcos
cheios de olhos filmam a história
dum deus desconhecido.

Paraíso dos montes sobre montes,
agressivos mas belos,
montes que se agigantam, ombros vivos
dos violentos ventos e do sol,
e montes que se dobram e desdobram com os ribombos,
abrindo ribanceiras e fundões.
Oh Cachão da Valeira, sepultura de incêndios!

Paraíso das hortinhas e pomares:
a água é menos esquiva
para que os homens sujem bem as mãos
de encaixotar num sonho meia dúzia de laranjas,
enquanto os melros pintam a carvão
sua risada galhofeira e livre.

Paraíso dos nove meses de Inverno
e três de inferno:
Outubro a Junho, é o nevoeiro sanguessuga
que morde até aos ossos e às palavras;
Julho a Setembro, é o sol em lâmina
que fere os olhos até ao pensamento.

Paraíso do suor,
dos homens de camisas empastadas,
a terra a queimar os lábios
e a torcer-lhes a fala em raivas humaníssimas,
cavando, neles cavando o desespero
e o amor também
(a noite e o luar)
porque no fim de tudo
a terra é flor e corpo de mulher.

Paraíso da aguarela forte das vinhas
que entram em ondas verdes pelos olhos.
Vinhas que estão na vida desta gente
como grito nos lábios,
como flor no desejo,
como o olhar nos olhos,
vinhas, sei lá, que são a própria vida desta gente.

Paraíso dourado das vindimas!
Então o Douro é d’ouro.
Ouro no sol que põe tudo em labaredas:
os cachos e as nuvens de poeira
espantadas pelas patas dos cavalos
e dos camiões, ron-ron, ladeira acima.
Ouro na tagarelice das mulheres
que vindimam as uvas e as ideias;
um certo ouro no silêncio dos homens
que em fila e ferro transportam os cestos.
Ouro ainda no regresso do trabalho,
ao som dum bombo, duma concertina.
Ouro nos cestos, nos lagares, nas pipas,
ouro, ouro, suado de sangue, ouro!
Ouro talvez nos cálices de quem
veio de longe assistir da janela.
Ah Paraíso dourado das vindimas,
do vinho quente, vinho-gente, que cintila,
que é suor e sangue e sol engarrafado!

Paraíso também das romarias;
Da Senhora da Piedade, do Viso e dos Remédios:
gente de gatas como animais
porque a Senhora interveio
e ante o céu
somos uma coisa qualquer por acabar.
Há um homem que leva uma facada,
mas há também ex-votos,
estrelas a germinar nos olhos.

Paraíso das sete ermidas!
– o céu gotejando no cimo dos montes.
De castros e ruínas
– o vento do passado colando-se ao rosto.
Das minas que devassam o abismo
– fui à boca de uma em criança
e recuei como se tivesse visto
todos os dentes da bicha-das-sete-cabeças.

Paraíso dos caminhos tortuosos
– pois Deus escreve direito por linhas tortas.
Dos duendes nocturnos
– ninguém chegue à janela quando passam.
Das mouras encantadas
– o afiançou minha avó: há uma
que se chama Maria
e é linda, linda como as manhãs de Junho.

Paraíso
dos barrancos inconcebíveis,
das rogas e dos silêncios,
do grandioso silêncio das montanhas!

Paraíso! Paraíso!
Oh cântico de pedra à esperança!

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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