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Bastou um sopro
Portugal (1968-69), por Neal Slavin A Arsénio Mota Os dias contam-lhe o tempo ressequido: o espaço dos passos em Ceuta, a cinza do canto gótico, pomares de coisas muito gastas. Em pequenos círculos, os olhos divisam o rosto com dificuldade: uma estátua de sal, um ceptro de água nos confins da noite. Bastou um sopro [...] Continuar a Ler -
O motim
Dos amotinados de 1757 nomeio a Estrelada. Se gostava da pingoleta coisa que não sei: vinho tem razões que a razão desconhece e as razões são aos milhões. Certo, certo é que o Marquês disse por cima do ombro: nas tabernas do Porto vinho só o da Companhia — ponto final. Vírgula, disse o povo, [...] Continuar a Ler -
Se Jesus voltasse ao mundo
Foto por Juan (Pexels) I Se Jesus voltasse ao mundo, tivesse de renascer, que lugar escolheria? Gostaria de saber. Numa vivenda bonita, daquelas da beira-mar? Num hotel de cinco estrelas, com janelas a brilhar? Coro Pensem lá, mas pensem bem, que nós pensamos também. Vamos pensar, mas a sério; decifrar este mistério. É mistério? Talvez [...] Continuar a Ler -
Poema com história
Estação de comboio. Da série Portugal (1968-69), por Neal Slavin Éramos seis na gare da estação. Lá no fundo, encostado à parede, só, magnífico, a perna esquerda em triângulo, um rapaz tocava concertina. Um homem de calças engomadas lia o jornal e falava. Falava de guerra. “Que se matem. Uns e outros são contra nós” [...] Continuar a Ler -
Rosa Alice Branco
Prémio Literário António Cabral 2023 Cão e rapariga por Julian Hochgesang em Unsplash Não sei porque é que os dias de canícula se chamam assim — Konrad Lorenz A escrita é um cão a ganir à porta que se abre para lhe dar mimos, o agasalha à lareira com um osso farto e tanto o [...] Continuar a Ler -
Figos pretos
Subimos aos calços mais altos em busca dos figos pretos de que a mãe tanto falava. A cor exerce em nós alguma atracção que nos leva a desafiar estes íngremes taludes onde ruíram paredes e com elas as lajes salientes que serviam de degraus. Escorregamos na luz, de pedra, e as figueiras olham-nos como gatos [...] Continuar a Ler -
As quatro estações
Primavera — O teu corpo quando vens ter comigo Verão — A tarde escorrendo nos teus ombros Outono — O vento desfolhando o teu cabelo Inverno — A porta por onde entravas Quando o silêncio reverdece Ler mais Continuar a Ler -
Perfil: António Cabral
A 19-10-1978 a RTP (Rádio Televisão Portuguesa) dedicou o programa Perfil (da autoria de Alexandre O’Neill e Rui de Brito) ao poeta António Cabral. Este programa encontra-se protegido por direitos de propriedade industrial e direitos de autor, podendo ser visualizado nos Arquivos RTP. Poemas declamados: "Primeira elegia de Lisboa" (Entre o azul e a circunstância) [...] Continuar a Ler -
Canção de embalar
O gato do vento mia nas frinchas da janela. “Dorme, menino, dorme.” Teu pai anda triste como as sombras do fundo da cozinha pois, há dois dias, o vento destroça as inocentes videiras sem defesa. Vê-se da janela o bailado infernal: parecem virgens malucas ou esqueletos a que roubassem a carne e a alegria. Mas [...] Continuar a Ler -
Numa praia do sul
A Afonso Cautela Aqui numa praia do sul o vento é morno e os dias são de cera. Retiro as escamas do quotidiano pensar. Ácidas, salitrosas. E assim mergulho numa lentidão de algas e sal. Assim te imagino, aldeia longínqua, cada vez mais sepultada entre vinhedos. Algures no norte. Semeada no sol. O meu tronco [...] Continuar a Ler