Bastou um sopro

Portugal (1968-69), por Neal Slavin
Portugal (1968-69), por Neal Slavin

A Arsénio Mota

Os dias contam-lhe o tempo ressequido:
o espaço dos passos em Ceuta,
a cinza do canto gótico, pomares
de coisas muito gastas.
Em pequenos círculos, os olhos
divisam o rosto com dificuldade:
uma estátua de sal, um ceptro
de água nos confins da noite.

Bastou um sopro
e as tapeçarias começaram a evolar-se
nas muralhas do sono.
Bastou um sopro
e as palavras já não andam de canto
em canto,
como embalagens clandestinas.

Meu velho cárcere com gabinetes especiais
para os que vendiam a consciência
por trinta dinheiros.
Os dias adelgaçavam-se nas pequenas fendas,
pedra do pensamento voando em estilhas,
na erva em lâmina das vinhas,
das ruas por encher, dos ossos
nos holocaustos inúteis.

Moeda corrente era, como todos sabíamos,
a traição bebida desprevenidamente
à mesa do café, com os idólatras da cinza,
cada vez mais emporcalhados
pelos dejetos que despediam no simples olhar.
Eles eram os pilares duma tradição ramelosa
do chamado Portugal de antanho, museu
de cera que derreteu a um breve lume.

Essa coisa viscosa ainda se vê por aí.
Mas
os dias contam-lhe o tempo ressequido.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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