Feira de Montalegre (décadas de 1950-60) por Artur Pastor
Feira de Montalegre (décadas de 1950-60) por Artur Pastor (fonte)

Viam-se com frequência nas feiras da nossa terra cegos a cantarem com o fito na esmola das pessoas que entretanto os rodeavam. Pessoas muitas vezes interessadas, até à emoção, nas geralmente suaves e dolentes histórias que iam ouvindo. Esses tão simpáticos herdeiros dos jograis medievos vêem-se cada vez menos, que as feiras, aliás, perdem gradualmente o seu antigo bulício e esplendor, mercê dos mercados modernos, sobretudo dos super e hiper. Aedos que tantas vezes escutei, como eu os recordo!

Faziam-se acompanhar sempre de alguém, frequentemente de uma criança que, ao fim de cada actuação, ia de chapéu na mão solicitar a ajuda dos circunstantes. E o “obrigado”, dito ao modo de quem geme uma qualquer desventura, era o prolongamento da história narrada. Velhos solaus ou a versificação de um caso lastimoso, real ou não: se real, aureolado já de razões misteriosas e pormenores impensáveis; se imaginário, contado de forma a avultar-lhe o realismo e os segredos do coração humano.

Não era apenas nos lugares onde havia feira que os cegos apareciam, pois muitas vezes iam lamuriar de porta em porta, quando não em romarias ou num pequeno largo da povoação, aos domingos, ou à tardinha, pelo regresso do trabalho. Um tipo de mendicidade que, por vezes, caía fundo na alma das pessoas simples, as quais guardavam, por muito tempo, as letras e músicas ouvidas.

De uma dessas pungentes xácaras, que percorreu a região transmontana e duriense, pela minha infância, me lembro agora, só a ouvindo de momento aos mais velhos, mas de longe em longe. Um conto em que o sentido da tragédia e a lição moral ou efeito catártico estão bem patentes:

A filha do fazendeiro
foi sempre a moça mais linda.
Namorava um serralheiro,
tinha-lhe amor verdadeiro,
um amor que nunca finda.

O pai da Rosa não q’ria
que ela amasse um operário:
teve nele uma mania
de a meter na burguesia,
casando-a c’um milionário.

O romance prossegue, revelando a paixão inabalável dos jovens que não cedem a pressões, como sucedeu com o Simão e a Teresa do Amor de Perdição. Entretanto, o pai de Rosa, enraivecido, tresloucado, “acabou com tanto amor,/ matando o trabalhador/ que a Rosa tanto adorava”.

Ao ver morto o namorado,
grande dor a Rosa tem.
Com o peito esfacelado,
sobre o caixão do amado
a Rosa morreu também.

É este o ponto alto do poema, equivalente ao que nas tragédias da Antiguidade se chamava catástrofe (desgraça), a culminar o clímax (desenvolvimento gradual da acção). E segue-se a passagem final, espécie de êxodo ou epílogo, em que se apela à inteligência sensata:

O pai da Rosa morreu,
cheio de remorso e dor.
Um conselho aos filhos deu:
nunca façam como eu;
quem vence sempre é o amor.

Apresento os excertos tal como os ouvi, sabendo no entanto que há pequenas variantes. Trata-se de uma composição bem ritmada e, apesar de patética, sem enxúndias de linguagem. Por esta amostra, não se pode falar da inferioridade formal da poesia popular, como tem muitas vezes acontecido, a partir do próprio Garrett, o qual ia ao ponto de modificar as composições tradicionais com a finalidade de as “aperfeiçoar”. Garrett, note-se, que foi um pioneiro nas recolhas deste tipo de poesia, reconhecendo-lhe profundo interesse humano e cultural.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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