A Missa do Galo começa à meia noite, mas o Catrino chega uns minutos depois e encosta-se à pia de água benta no fundo da igreja. Calado como um rato, não reza nem canta, vendo-se-lhe somente bulir os olhos, como se fossem as luzinhas dum gravador. Ou pontos de interrogação. Esta igreja é pobre, mas a verdade é que a magnificência e o esplendor dum templo se medem no que se vê pelo que se não vê, o que vai ficando sucessivamente antes ou depois, seja nos rendilhados duma porta, no esmalte vibrante das abóbadas ou nas torres incendiadas de frémitos. Nenhuma comparação ou símbolo, mesmo estes, lhes apreendem o sentido. Esta igreja é de facto modesta, rude, se lhe descontarmos a pintura graciosamente desbotada do tecto. Mas onde está, onde está o critério seguro de toda a avaliação? Quando irei descobrir o esplendor na aparência universal do Encoberto, ovo que rumoreja, vinhedos em hossana, fetos bravos e uma promessa por cumprir no musgo do cérebro?

Quando irei descobrir o esplendor na aparência universal do Encoberto, ovo que rumoreja, vinhedos em hossana, fetos bravos e uma promessa por cumprir no musgo do cérebro?

Esta igreja é como as outras. As igrejas são todas iguais. E aquela mulher de cabelo negro, sempre ajoelhada, toda súplica, terá sem dúvida um qualquer sofrimento interior, como o anjo deste retábulo, por mais anjo que seja, de contrário não precisaria de ter umas asas. Tudo é incompleto – diz agora o padre na homilia, – e para nos completar é que Deus se fez homem. A porra – penso eu, – é o homem ser de sua natureza incompleto. Estou encostado a uma pia de água benta, por um qualquer acaso, julgo. Ou não será que a ideia de acaso é tão só a justificação vaidosa das nossas insuficiências? Diverte-me aquele homem de voz avinhada. Quase todos os homens que aqui estão têm a voz avinhada. Não há mal nenhum nisso, pois a ceia foi em honra d’Ele. O homem canta o bendito e louvado seja como se fosse um pastor, convencido pelo visto de que viveu há dois mil anos e foi com outros pastores da sua igualha adorar o bebé na gruta de Belém. As catequistas aninham-se como perdigotos à volta de um presepiozinho, junto do qual as caixas de doce sortido e garrafas de vinho do Porto contracenam com molhos de fumeiro e um grande coelho de pernas atacas. Latejante. As crianças do sexo feminino estão ao pé das mães. Bonito aquele lacinho azul. E as do sexo masculino, ao pé dos pais. A simetria bem compostinha. Lúdica. Que seria da organização se não fosse a tendência inata dos homens para o jogo? Ouvi dizer que tenho cara de bispo e isso é verdade: todos temos a cara uns dos outros; o mal é as pessoas não se aperceberem disso. Aquele altar prolonga os de colónia. Fulge o representante de Cristo em pleno Tabor; e o menino que lhe chega as galhetas da água e do vinho tem cara de pato, é um pato a vogar serenamente nas águas da sua fragilidade. Divide-me esta luz de cera, este odor de cera e incensos, esta alma expansiva em que todos nos diluímos. Um menino nasceu entre cedros, continuará a nascer e morrerá como nós no convés e no pavor da sua intensidade, não se sabe em que lugar do coração, assim como era no princípio. Não há outra saída: a única via para a salvação é encharcarmo-nos de verde. No momento em que o padre eleva o cálice da consagração a mulher do cabelo negro suspira e um velhote indaga baixinho: o vinho é de mesa ou tratado? Tratado, TRATADO – gritam em uníssono as paredes cheias de olhos; não há mais nada aqui dentro: só olhos, como no óleo sobre tela La Scala (Les yeux), de Vieira da Silva… Devo ter ficado tonto porque o último da fila que vai beijar o Menino sou eu. Terminou a cerimónia e calou-se o repique dos sinos. Dormirei? Antes de me deitar, despeço-me destes montes ovinos, da lua que me serve de espelho, do rio, do meu rio: guardar-vos-ei na silva de cada instante, a minha sarça ardente.

Ao outro dia, estranhava-se no café da terra que o Catrino não tivesse ido à Missa do Galo, quando ele, em carne e osso, entrou, fresco, cheio e luzente como um diospiro una, duna, trina, catrina – disse. Vinho para todos. Mas. Hoje. Vinho fino ou moscatel Au revoir. Um cão maroto ficou-se a vê-lo partir, abanando a cauda lentamente.

Quarta e última parte de “Um Natal do Catrino”, conjunto de contos originalmente publicados no Jornal de Notícias e posteriormente reunidos na colectânea Tradições Populares II.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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