Canção da fronteira

Moça tão formosa
não vi na fronteira
como uma ceifeira
que cantava rosa.

Foi em Barca d’Alva
quando o sol nascia
uma ceifeira cantava
cantando vertia
trovas na fronteira
quando o sol nascia.

A saia de chita,
bluzinha limão.
Que coisa bonita
sobre o coração!
Nos ramos da luz
um fruto limão.

De foice na mão
suspensa dum sonho
mordendo dois bagos
rubros de medonho;
seus olhos dois bagos
suspensos dum sonho,
que engano de rosa?

O poema “Velha guitarra” de António Cabral foi originalmente publicado em Os homens cantam a Nordeste (1967) e incluído na antologia poética O nosso amargo cancioneiro (1972), organizada por José Viale Moutinho, com ligeiras modificações e um novo título: “Canção da fronteira”. Foi musicado e interpretado por Adriano Correia de Oliveira (1942-1982) que o incluiu no álbum O canto e as armas (1969), obra de referência da música popular portuguesa do século XX.

“Esta quase centena de poemas tem sido cantada em convívios académicos, em associações recreativas, cooperativas, salões de bombeiros, ar livre; algumas foram premiadas; algumas foram proibidas. De qualquer modo têm promovido não só estádios mentais muito importantes para o nosso tempo como têm conseguido leitores para livros e autores até há bem pouco arrumados na prateleira do esquecimento ou no usufruto de minorias intelectualizadas, no sentido mais restrito da palavra. Eis o balanço, o deve e o haver de uma intervenção que alcançou foros de cidadania através de um programa de televisão que se chamou “Zip-Zip”. Nele, as pantalhas negadas a José Afonso e a Adriano Correia de Oliveira estiveram à disposição (circunstancial) de um Fanhais, de um Vieira da Silva, de um Manuel Freire, alguns posteriormente condicionados na sua liberdade de cantar publicamente.

 

Convém que deixe uma palavra de ternura por uma revista intitulada “Mundo da Canção”. Pois ao contrário do que poderão imaginar os juízes de coisa nenhuma e atenção falhada no título um tanto vulgar, esta publicação tem sido o grande baluarte do movimento de renovação da música portuguesa. Nas suas colunas se defenderam, tantas vezes quixotescamente, os valores essenciais da palavra cantada como intervenção. E se combateu simultaneamente o mau gosto.”

– José Viale Moutinho 1

  1. in prefácio à 1.º edição de O nosso amargo cancioneiro (1972)
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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