Ainda hoje se fala nesse dia

Jovem com megafone no 25 de Abril de 1974. Foto de Alfredo Cunha.
Jovem com megafone no 25 de Abril de 1974. Foto de Alfredo Cunha.

Ainda hoje se fala nesse dia. Que
surgiu como bola de fogo
na sulfurosa montanha.
Dies irae, dies illa. Distante, mas

não tanto que se tenha apagado da raiva.
Sobretudo os mais novos são os primeiros
a recordar. Um hálito forte
de Primavera excitava o húmido

corpo da noite e alguns cravos
trocavam na varanda suas palavras
recentemente proibidas.
À boca de muitos túneis, o mesmo corpo

surgia lentamente inundado de tons
claros. E passos musicais, firmes,
falavam cada vez mais alto
pela incrível madrugada.

Quem decidiu tão feroz descontentamento
e encheu de alecrim as urnas
da memória? Até o ouro tinha um sabor
a enxofre. Velhas ideias

ardiam. Quão doce espectáculo! As culpas
reentravam no buraco dos olhos,
coisas insalubres, enquanto as lendas
vinham para a rua em cabelo.

Quando rompeu a manhã, um clarão
íntimo começou a jorrar
dos armários da luz, acumulação
de muitos anos, subiu de novo

às varandas, floriu no púbis.
Escancarou as coisas interditas.
Os jornais e as fábricas, a alcova
secreta, a rua e os campos anilados,

A escola da luz, tudo isso comoveu
o frágil coração do poeta que
pôs os olhos atentos na cotovia:
do morro o coração, emerso no nevoeiro,

cintilava. Ainda hoje
se fala desse dia.
Mas
sobretudo os mais novos continuam a recordar.

in LOURES, C.; SIMÕES, M. Poemabril : antologia poética : depoimentos de alguns “Capitães de Abril” e poemas de poetas portugueses no 20 ̊aniversário do 25 de Abril. [S.l.] Fora do Texto, 1994.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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