As pulhas e os casamentos

Ó CA-MA-RA-DA… A…A!…

– Uma “pulha” – diz Aninhas mal disposta, olhar atento. – Embirro do Entrudo só por estas malditas “pulhas”. Põem ao léu a verdade e a mentira do bom e do mau…

A este tempo já de outro ponto eminente, da Horta do Ferrão, para que os pregões se cruzem sobre o povoado, outra voz, também cavernosa, também arrastada, também através de uma buzina:

– Que… é… lá – á – á?

Do Caneiro, rasgando as sílabas, espaçando as palavras, impondo-lhes tonalidades arrepiantes, a primeira voz interpela:

– Então?… o Du-ar-te… do Le-an-dro… ca-sa… ou não ca-sa-a?

Duarte olha a irmã, como fulminado. A irmã olha-o a ele, como alanceada.

A segunda responde:

– Não … sei… na-da-a-a!

Silêncio. Duarte sufoca. Quem serão as almas danadas que se aproveitam das liberdades do Entrudo para exporem, nua e vergastada, na varanda de Pilatos, a dignidade do seu amor que a vila inteira, neste momento, por lojas, bailes e lareiras, a mão no ouvido, os olhos esbugalhados, o riso engatilhado, se prepara para escarnecer, para enxovalhar, para flagelar?

A primeira voz arremete contra o silêncio, elucidativa:

– Pois… não…ca-sa! Que-ria! Mas…de-ram-lhe… nas ven-tas… P’ra trás!

E logo, dos dois pontos culminantes de comunicação, estruge, simultânea sarcástica, enorme, trovejante, uma gargalhada em ohs! cadenciados:

– Oh! Oh! Oh! Oh! 1.

As pulhas são gracejos vincadamente satíricos que oscilam entre o humor lúdico e o lavar de roupa suja. Em muitas localidades combinam-se com os casamentos ou limitam-se mesmo a eles, assumindo neste último caso uma atitude elegante, embora arteira. Esta curiosa forma de intromissão e de troça da vida alheia vem de longe, dos tempos da poesia trovadoresca, em que nas cantigas de escárnio e maldizer pouco ou nada escapava ao que merecesse ironia e reprovação, esta a empolar-se muitas vezes, até à calúnia. Então, zurzia-se impiedosamente o mau comportamento de clérigos e leigos, de avarentos, dos falsos cruzados, dos que na guerra eram cobardes, dos médicos falsos ou incompetentes, dos alcaides desleais a D. Sancho II, dos bruxos e bruxas, das mulheres de mau porte, etc. Célebre ficou a soldadeira Maria Pérez Balteira: “O que veer quiser, ai, cavaleiro, / Maria Pérez leve dinheiro”.

Mas um reforço da crítica maledicente, que pretendia ser no fundo uma sanção moral de gosto popular, encontra-se nas velhas procissões de penitência e vias-sacras de rua, que agora praticamente desapareceram ou se mantêm isoladas, numa ou noutra aldeia nortenha reduzidas a interessantes manifestações de religiosidade tradicional. Em Guimarães e em Braga, conta Alfredo Guimarães 2 as procissões excediam-se, isto ainda perto do final do século passado 3. Pelas ruas de Guimarães, nas sextas-feiras da Quaresma, à noite, desfilavam hábitos negros e gente descalça, franciscanos que, desconhecendo porventura o Cântico do Irmão Sol do “Poverello”, estrondeavam, sem dó, nem piedade, sobre a vida alheia. A via-sacra parava, de quando em quando, e um missionário trazia à baila: Adultérios, roubos, ambições, dissidências políticas – os malhados e o Senhor D. Miguel, o testamento de fulana, a burla de cicrano, a mulher de beltrano, etc. -, tudo isso vinha à praça, envolto sempre numa interpretação velhaca dos sete pecados capitais, ou de alguma patética evocação de além-campa. Em Braga, coisa semelhante sucedia na procissão do fogaréus, na noite de Quinta-Feira Santa. Os que empunhavam as lanternas davam-se ao mister de divulgar os mais respeitosos segredos de família e de inventar as mais infames calúnias.

Os tempos mudaram. A cultura muda com o tempo, embora o fundo tradicional se mantenha.

  1. Sousa Costa – Ressurreição dos Mortos, Porto, 1955
  2. Alfredo Guimarães – As Vias-Sacras e Terra Portuguesa
  3. O autor refere-se ao século XIX
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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