Se a música tem a idade dos pássaros e dos ventos na janela, esta banda também e com ela a minha infância. Bandinha de Porretas & Bugalhos, gloriosa bandinha, que ainda hoje vejo passar nas ruas em declive, voo rasante comigo dentro. Perdi muita coisa desde então e a primeira foi a noção do tempo que nessa altura não corria e cabia todo num só olhar. Era assim: vinha de regar a horta com o meu pai e trazia uma porreta: pó, prró, pó, pó. Para quem não sabe eu digo: cortava-se um talo de cebolo, um dos rijos, que tivesse flor no alto. A flor, claro, tirava-se, cortava-se com uma navalha para a embocadura ficar mais certinha e até podia servir para a semente, se já estivesse madura, e aí tínhamos a porreta, um trombone de estalo, apto para a função – bastava soprar. Um instrumento musical e peras, um brinquedo como o bugalho, o assobio e outros: a fisga, o pião, um não acabar de coisas bonitas. Quanto ao bugalho, bastava furá-lo ao meio, colar papel de seda no buraquinho oposto ao da boca – tã, trrã, tã, tã, e não só, tocava-se tudo, desde o Tiroliro à Rosinha do Meio. De uma vez, uma catraia chamada Rosinha, que andava connosco, pôs-se a rir muito e nós fizemos uma roda com ela ao meio a dançar:

Ó Rosinha, ó Rosinha do meio,
vem comigo malhar o centeio,
o centeio, o centeio, a cevada,
ó Rosinha, minha namorada.

Foi giro. Aí pelos meados de Julho, sem dia certo, dependia do ano, o certo, certo, é que a Bandinha de Porretas & Bugalhos estrondeava por ruas e canelhas da aldeia. Dantes, havia duas formações, a dos de baixo, dada ao bugalho, e a dos de cima que foi refinando o uso da porreta. Quando se cruzavam, tinha de ser, ora pois, soslaiavam-se empafiamente, de nariz em muitos sinos, fazendo por vezes compassos de espera, a fim de se agredirem com sonoridades aguçadinhas. Até que um dia o Pintado e o Estica, dois repetentes da quarta classe, já matulões, um porreta e outro bugalho, primos que eram, lá conseguiram fazer as pazes e unir as tropas. Viva a Gloriosa Banda de Porretas & Bugalhos. Viva. Ainda houve quem metesse cizânia pelo meio, ora por que não se chamava a banda de bugalhos e porretas, o b está primeiro do que o p. Porra, tonitruou o Pintado, porreta vem de porra, como diz o meu pai, e nós somos todos porreiros – é ou não é? É. Porreiros, porreiros. Era uma tarde de grandes borralheiras e a Rosinha, que andava por ali, tinha ido ao quintal da avó buscar um caldeiro de figos lampos com que apaparicou os ânimos. Estava ainda ao pé da escola e combinou-se logo uma rusga para o dia seguinte. Viva a malta. Viva. Então a Rosinha, bracinhos de madrepérola, foi-se a um pau e começou a malhar com ele num caldeiro – prontos, disse o Pintado, prontos, a Rosinha amanhã também vai e vai à frente a abrir o farrancho. E foi, foi muitas vezes. A mãe a princípio ralhou-lhe, não gostava dessas misturas, mas depois começou a gostar, por que não, sempre era a generala. Se bem a entendo, diz-me a idade das coisas que algo semelhante ocorreu no princípio dos princípios, quando o verbo começou a dar sinais convincentes.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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