Historinhas de Galegos no Douro – parte 2/3

Amaruchar amarucham

Um dia, iam de uma aldeia para outra e sentiram fome. Viram um portuguesito que estava a varejar umas nogueiras e lá lhes pareceu que eram pessegueiros. Regulavam mal da cabeça, tal a larica e a sede que deles se tinham apoderado. O mais afouto e reguila, o tal que contava os outros e não se contava a si, atreveu-se a pedir alguns pêssegos para ele e para os compañeros.

– Por favor, patrón. Dios le pagará.

O portuguesito espreitou o furo e descobriu uma oportunidade de descascar as nozes sem qualquer trabalho da sua parte. E disse:

– Muito bem. Ides encher a barriguinha dos melhores pêssegos que há no mundo e arredores. Nunca os ireis esquecer. Acreditais?

– Acreditamos.

– Ora vinde. Tendes aqui dois cestos cheios e ali outros dois ainda vazios. Podeis comer à vontade, mas com uma condição: papais a polpa sumuda, tanta quanta quiserdes, mas os caroços deitai-los nos cestos vazios, que é para eu os voltar a semear. E o que é certo é que os galegos, que já só viam pêssegos à sua frente, caíram facilmente na esparrela. Puseram-se então a manducar desalmadamente e comentavam, fazendo carantonhas a cada dentada:

– Amaruchar 1 amarucham, mas pêssegos son.

Quinta de Malvedos por Emílio Biel
Quinta de Malvedos por Emílio Biel. Fonte: Arquivo Municipal do Porto.

A raposa

A paparoca deu-lhes para se endiabrarem e, quando já iam nas andadeiras, atoparam à beira do caminho uma raposa morta e entourida. Miraram-na bem, miraram, e deu-lhes para descarregar sobre ela as fúrias e desnortes provocados pelo sumo azedo que lhes ardia no estômago, tanto mais que a raposa, inchada como estava e peludeca, lembrava-lhes um bombo da festa dos Lázaros em Verín. Travou cada qual de seu palo e zabumbaram nela forte e feio. A cada pancada, a salta-pocinhas ora se virava para um lado ora para o outro, saltando mesmo ao ar. E eles enraivecidos:

– Reviva que não reviva, levar há-de as levar.

Um mal nunca vem só

Redra de borla

Foi quando o reguila teve a ideia de se dividirem em três grupos a que deram os nomes de Grupo de Baixo, Grupo do Meio e Grupo de Cima.

O Grupo de Cima rumou a um povoado encavalitado na montanha onde decorriam os trabalhos da escava, serviço que consiste em abrir uma meia cana ao longo de cada bardo de videiras, a fim de aliviar estas de ervas daninhas e facilitar a adubação, com a terra mais permeável à chuva. Um lavrador contratou o grupo que, uma vez executada a tarefa, quis receber logo o dinheirinho. Como o lavrador se escusasse do pagamento imediato, alegando que só depois de vender o vinho é que estava em condições de o fazer, a malta reuniu-se e, depois de acalorada discussão, deliberou o seguinte: pegar cada um de sua enxada, irem todos à vinha do espertalhão e desfazerem a escava. Isto, passados meses, já na terra crescia o farto ervaçal de Abril. A sede de vingança era grande e meteram mãos à obra. O lavrador soube, foi ver de longe e esfregou as mãos de contente.

– Olha, olha: estão-me a fazer a redra de borla!

A azeitona

O Grupo do Meio foi dar a uma aldeia em cujos terrenos ladeirentos abundavam olivais. Facilmente encontrou patrão que, mirados e remirados os farsolas, logo propôs trabalho no varejo das oliveiras e apanha da azeitona. Que sim-senhor, anuíram imediatamente. O mês de Dezembro corria friorento, com algumas rajadas de vento que faziam cair a azeitona, a qual, uma vez no chão, ficava cozida e recozida com a geada. Apenas chegaram ao olival, nuestros hermanos, porque tal azeitona lhes abria o apetite, começaram a manducá-la como viram fazer aos tordos,

– e estes bem gordinhos e ligeiros que andam.

O patrão, que não era trouxa, interveio, recomendando que comessem à-vontadinha, mas deixando cada um seu montinho de carunhas em cima de uma lájea. E eles, agradecidos:

– Prò céu vá o fidargo 2.

Ao fim do primeiro dia de labuta, o dono saiu-se-lhes com esta, cofiando a barbicha:

– Bom, temos de fazer contas.

Olhou para os montículos de carunha e disse:

– Segundo os meus cálculos, vós ainda me deveis dinheiro, pois cada azeitona vale um tostão.

E eles meio azoinados:

– Prò inferno vá o fidargo.

E desandaram com o rabo entre as pernas.

Vista geral do Pinhão por Emílio Biel
Vista geral do Pinhão por Emílio Biel. Fonte: Arquivo Municipal do Porto.

Cachaplim plim

Desciam por um caminho de cabras e assomaram a um fragão donde se contemplava, a meio da encosta fronteira, um povoado que lhes chamou a atenção. Fosse da graça que acharam a tanta janela e cal reluzente, sinal de conforto, fosse da grandeza que respirava o solar duma quinta, mais abaixo, decidiram romper o acordo de trabalhar para o fidargo das azeitonas e puseram-se em marcha para a outra banda. Quem se muda Deus o ajuda, ora pois.

Ao chegarem ao rio, viram um barco e um deles gritou ao barqueiro que fosse buscá-los depressinha,

– si non…

– Se não?! Se não quê, seu galego?

– Si, non… quedamos por acá

– Ah!

E partiram, tendo de pôr os tlíntamos a dobrar por causa da urgência. Já no outro lado foi o bom e o bonito. Queria o homem do barco marcá-los, antes de regressar, e arremessou contra o mais chibante uma joga do rio que lhe foi bater em cheio na tola. Aferroados, os galegos ripostaram, pegando no que por ali tinham à mão: torrões de lamiça que primeiro boleavam, disparando-os em seguida.

Ora à noite, os galegos contaram na taberna que os bólides iam direitinhos à fucinheira do portuguesito,

– cachaplás, plás!,

deixando-lha tão preta como a dum carvoeiro.

E, durante a ceia, o portuguesito contou à mulher que na refrega apanhava as jogas da margem, umas reboludas, outras esquinudas, certeiras como zagalotes, atirando-as à testa de cada um dos bisnaus, a qual ficara em papas e a esguichar sangue.

– Cachaplim, plim. Era cacho como nabo.

A rata sábia

O Grupo de Baixo ficou-se por uma quinta à beira-rio onde, de oito em oito dias, passava o barco rabelo da carreira que levava e trazia o correio. Quando, uma noite depois da ceia, estavam num terreiro a dançar a muiñeira, apareceu o feitor a entregar uma carta a um que se chamava Cortes, Xosé Cortes. Este leu, releu e começou a dar pulos de contente.

– Tenho mais um hijo! – exclamou.

Então um dos compañeros abeirou-se com passinhos calculados, tocou-lhe no ombro e disse-lhe à puridade:

– Ó boizana, tu estás aqui, passa dum ano, a tua mulher tem um filho e não dás conta que o filho não é teu?

– Como no? Então quando uma vaca tem vitelos estes não pertencem todos ao dono da vaca? Deixa-te de malandrices. O que tu tens é dor de cotovelo – concluiu, pondo-se a dançar ao toque da gaita de foles.

Ninguém teve coragem de se rir. Este Xosé era um pobre diabo, um bom-serás que não se metia com ninguém e gostava de dar uma ajudinha fosse a quem fosse. Todos no grupo o estimavam, tendo às vezes pena dele. Contava-se que andava há muito tempo desejoso de vir trabalhar para o Douro e, se mais cedo não veio, foi porque a sua mulher se opusera. Mas, como o tempo dá mais voltas do que um cachorro ao qual o rapazio chega aguarrás ao traseiro, a mulher começou a amaciar e um dia quase o impontou. A carta sobre o nascimento de mais um hijo dá a entender alguma coisa.

Contudo nos tempos em que a mulher precisava mesmo do marido e lhe bombardeava os ouvidos por dá-cá-aquela-palha, vinha ele um dia de Verín onde alguém lhe metera dentro bichinho luzidio e disparou, logo à porta de casa, na sua inocência tão límpida como sonhadora:

– Vou-me até ao Douro ganhar rios de dinheiro.

– Vais aonde? – perguntou a cara-metade.

– Ao Douro, para as vinhas, que agora é tempo das escadavadas 3 e lá pagam a bom pagar.

– Quem to disse?

– Disseram-me. Não te metas. Vou com uma roga. Amanhã ao meio-dia temos de nos juntar em Chaves.
E a mulher, que não era maldosa, não senhor, moendo e remoendo girassóis:

– Pois vai, seja feita a tua vontade, mas desde já te aviso: os caminhos andam cheios de ladrôes. E se te roubam? Se te roubam o saco da merenda e ainda por cima tens de beijar o cu ao ladrão? Pode ser. Pode ser.

E o Cortes empertigado, cheio de luas:

– Já te disse: vou ganhar muita bagalhoça para ver se a nossa casa arriba.

A mulher cedeu. Logo de madrugada, o marido partiu com um lódão enfiado num saco sobre o ombro. Pouco depois ela saiu também, vestida de homem, seguindo por um atalho. Percorrida obra de meia-légua, o Cortes tem um mau encontro.

– Ponha já no chão o saco e o fueiro – bradou-lhe um corpanzil encapuzado.

Ele obedeceu, claro.

– Mas…

– Nem mas nem meio mas, seu vagabundo, ganancioso e homem sem vergonha. Volte para ao pé da sua mulher, que é aí o seu lugar. Mas antes – disse o encapuzado, baixando as calças, – antes, faço-lhe o favor de me dar um beijo no cu. Venha depressinha.

E ele obedeceu novamente, desta vez sob a ameaça de um marmeleiro. Até lhe parecia que era o marmeleiro a falar. Ao beijar o cu ao figurão, não é que este lhe descarrega uma trovoada de ventos mal cheirosos?!

E assim teve de regressar. Já em casa, a mulher recebeu-o sorridente.

– Então?

Foi obrigado a contar. Sucedera, tintim-por-tintim, como ela tinha previsto. Almoçaram e acalmaram. A Xosefa, de quando em vez, dava uns suspiros consoladinhos. Aí ele começou a ficar desconfiado. Até que a rata sábia confessou. Fora ela que se lhe atravessara no caminho. Ela, sim, conduzida pelo Anjo da Guarda. Então ele, com uma candura sonsinha, concluiu:

– Bem me pareceu, mulher, que aquele peido cheirava às berças da nossa horta.

in Douro – Estudos e Documentos, Outubro 2004

  1. amargar
  2. fidalgo
  3. escavas
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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