O prazer lúdico

Encarecer a necessidade do prazer lúdico num tempo em que a crise económica parece avassaladora, sendo fracos os indícios de contenção, afigurar-se-á como jogo perigoso. É certo que o industrialismo expansionista, apesar de ameaçado, ele que se julgava na posse do segredo da galinha dos ovos de ouro, tenta recompor-se, fazendo orelhas moucas aos arautos da terceira vaga e da pós-modernidade, mas os planos e acções de recuperação, com destaque para os despedimentos, têm gerado ansiedade, quando não a revolta, dos trabalhadores. Este facto, aliado ao crescente aumento da população planetária, que já vai nos seis biliões 1 , levanta graves problemas sociais.

O desemprego e a miséria, a instabilidade política e o crime sempre existiram, mais ou menos, mas são agora realidades que os órgãos mediáticos fácil e diariamente difundem, pondo-nos de sobreaviso contra a desatenção. Hoje é assim: a comunicação social não perdoa, alertando-nos constantemente, mau grado uma bem mal disfarçada indisposição dos governantes acomodados que não sabem como reagir democraticamente. Ainda bem. Legítima se torna então a pergunta: falar da importância e da necessidade da actividade lúdica – jogos populares, desportos, artes – não equivale ao despropósito já proverbial de pregar a estômagos vazios?

O maior erro do industrialismo consistiu e consiste no economicismo febril e auto-suficiente que entontece no turbilhão dos tempos engavetados nos escritórios ou o tritura no bulício das fábricas, dos camiões e dos bancos, criando assustadoramente pequenos universos concentracionários. A insensatez do excesso contra a justa medida. O humanismo dos séculos XV e XVI degenerou gradualmente (oh céus!, quem pensava então na dialéctica) numa visão mecanicista das coisas e dos factos sociais. No pragmatismo. Conclusão: as letras e as artes foram-se desprestigiando e com elas o espírito lúdico, apesar do aparecimento do desporto bem organizado, dos jogos olímpicos modernos, dos campeonatos regionais, nacionais e internacionais de numerosas modalidades desportivas, que significavam, em princípio, nada mais, nada menos do que o levantar de muros floridos contra a vaga do utilitarismo. Mas o utilitarismo também afectou esses jogos e campeonatos onde não é difícil ver nos jogadores, muitas vezes, peças de máquinas ou robots telecomandados.

O desporto de alta competição industrializou-se e não se lobriga de momento uma saída que reconcilie o homem com o seu impulso lúdico, embora tal saída se sinta como urgente: sente-se nessa terceira vaga que é o relançamento por todos os países dos jogos populares e tradicionais, ainda não contaminados da rigidez normativa, da avidez impaciente, quando não mórbida, de muitas competições, das camisas de forças federativas, dos mecanismos empresariais. Não obstante as campanhas do “desporto para todos”, o desporto está a afastar-se quer dos chamados desportos de manutenção e de lazer, dos que ainda resistem ou não sofrem o assalto dos empresários, já que alguns, como a pelota, começam a abastardar-se.

Que estas palavras não sejam entendidas como um libelo contra o desporto. Nada disso. O que é preciso é que o desporto seja repensado, arejado, revitalizado, refreando simultaneamente o industrialismo mecanicista, o descomedimento, a ambição belicosa e a desumanização, tudo isto a propagar-se a assistentes e adeptos que fazem do domingo desportivo o dia à volta do qual giram não poucos dos mais exaltados sentimentos e preocupações da semana anterior e da seguinte.

O prazer lúdico é necessário à vida, mas o industrialismo, mesmo o desportivo, está a lavrar contra ele uma sentença de morte, a qual todavia, estejamos seguros disso, não virá a cumprir-se, a menos que o homem deixasse de o ser, transformando-se, por exemplo, no rinoceronte de que fala o Berenguer de Ionesco ou num computador japonês manipulado por uma abstracção. O homem resistirá porque continuará a nascer com um impulso lúdico que não pode deixar de funcionar, mesmo no desporto mais enredante, como se vê pelo sorriso sinceramente alegre e desanuviado de muitos desportistas. O impulso lúdico é primário (constitucional, inato), ao lado de outros como a alimentação e o sexo. A criança desenvolve-se jogando e os beavioristas mostraram bem como até os animais (ratos, gatos, macacos, etc.) gostam de brincar. O próprio adulto joga mais do que pensa; até no trabalho: basta repetir um gesto pelo prazer de o repetir. E é exactamente porque o homem cria a si próprio cada vez menos oportunidades lúdicas que ele se tem encaminhado no sentido da solidão nostálgica e do vazio existencial.

in Terra Quente (1-2-1994)

  1. À data de republicação deste artigo a população mundial estima-se em sete biliões.
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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