Uma tradição popular do Carnaval

Eu era ainda pequeno, 6 ou 7 anos, talvez um pouco menos, um pouco mais, tento abrir uma janela nos véus ondulantes da memória, ele subia pela rua acima, chongla-chongla, e nós espreitávamos pelas grades do adro, uma curiosidade receosa, uma quentura a subir aos olhos e a fazê-los arder em bolinhas azuis. Era uma coisa parecida com um cavalo, a caveira de um cavalo, o rabo de cavalo, os pés eram de homem, via-se bem, tinha chocalhos, chongla-chongla, por todo o corpo, e ao passar por nós vomitou um fumo esbranquiçado, fugimos, eu e os outros rapazinhos, ainda tínhamos na mente o fumo do enxofre, pestanas de caveira infernal, de que o padre falava na missa. Fugimos, mas regressámos, logo a seguir, uma coisa a puxar-nos outra vez para as grades, onde está o cavalinho, perguntávamos uns aos outros, tinha desaparecido, as bolinhas azuis diziam-nos que voltaria no ano seguinte.

Voltou durante alguns anos. Hoje está aqui no meu escritório. Pergunto-lhe por que já não passeia os seus grandes mistérios pelas ruas da minha terra, ele lança-me uns olhos mudos que num chongla-chongla quase imperceptível tilintam na máquina de escrever, e desaparece como um fantasma.

Cavalinho (Castedo do Douro, Carnaval de 1999)
Cavalinho (Castedo do Douro, Carnaval de 1999)

Dei, há pouco tempo boleia, de Alijó para o Castedo, ao senhor Raul Saminuna, homem já trôpego, a quem falei do Cavalinho. O Cavalinho era sempre ele e, quando ele deixou de aparecer, por mor de uma cinza que deitou nuns rufias, “um sarilho dos diabos”, nunca mais houve Cavalinho. “Ainda lá tenho alguns apetrechos”, disse-me. “E a caveira?”, perguntei-lhe. Tinha-a deitado fora. Quis eu saber como a arranjava. Simples: quando morria um cavalo, ia, passados tempos, ao lugar onde o tinham enterrado e sacava-lhe a cabeça que limpava e desinfectava com uns “pozes”. Qual o significado do Cavalinho é que ele não me soube dizer. Era uma coisa que vinha de longe, de que gostava, “pronto”, sentia lá dentro “não sei quê”, meter medo e fazer rir ao mesmo tempo.

Será o Cavalinho uma versão poética e burlesca do lobisomem? Representar e desfigurar uma coisa é uma forma de a negar, retirando-lhe o estatuto de realidade independente e reduzi-la à sua dimensão fantasmática. O lobisomem nesta ordem de ideias é assim o precipitado imaginário dos medos nocturnos. O Cavalinho poetiza-o em magnífico jogo. De notar que em Castedo do Douro a tradição atribui ao lobisomem a forma conjunta de cavalo e cavaleiro, este com aguilhada reluzente que tanto pode furar uma estrela como os olhos dos curiosos que vierem à janela. Mas o Cavalinho pode ter mesmo outra leitura simbólica, desde a de um diabrete em simbiose com o espírito da vegetação (uma espécie de fauno ou sátiro que ficasse da antiguidade), até à de um adeus tragicómico às solicitações mundanas, o que a caveira parece indicar.

O Cavalinho entrou-me de novo no escritório, chongla-chongla, chongla-chongla, é o Diabo, asas de Diabo, tem asas como S. Miguel e um olho ciclópico, crinas de cavalo, crinas em arco ao vento a dizer-lhe que este ano os gafanhotos vão caber todos na copa do diospireiro, construirão aí as suas casas de mel e a manhã de domingo cobrir-se-á de romãs, cheiro de cavalo, crinas de cavalo, asas de S. Miguel, e um olho, cavalo das estrelas à minha janela, um olho apenas, marinho, lá no fundo está uma ilha, Ulisses fala com a ninfa, empresta-me a concha dos teus olhos, o guizo dos teus olhos, o mistério de tanta meninice.

Cavalinho, vem sentar-te imediatamente na borda do meu tempo.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

Saber mais…