Flores para o Zé da Naia

Entra. Vivo nesta casa, a minha tebaida. A bem dizer, mais no prédio que na casa. E agora vais beber um copito do meu tintol, isso é que vais. Vais tu e vou eu. Por estes pucarinhos de barro que são ainda do tempo da Maria Cachucha. Que sim? Ora, à saúde dos velhos tempos. De quando andávamos naquela escola de sobrado meio rilhado do bicho. E à saída jogávamos ao rou-rou, à roça e ao tiroliro. Isso é que eram tempos! Os velhos trabalhavam e nós brincávamos. Ai tu ris-te! Então lá vai outra pucarada. Tirada aqui do pipo. Que não? Já sei: o enterro precisa de acompanhamento. Pega lá estes figos secos. Vá, não botes olhadura para aquela prateleirinha de livros e para a mesa. Sim, é um livro de Jorge Amado, claro, e aquele caderno tem coisas pessoais. Não bulas. Sape gato. A propósito de Jorge Amado, olha, conheci-o em Manaus, exacto, no Brasil, ao pé do Rio Negro. Já que estou a falar dum rio, vamos sair da espelunca e dar uma vista de olhos ao Douro. Pois. Vê-se meio mundo. A outra metade está dentro de nós. Sentemo-nos neste penedo. Aquele casinhoto redondo ali? Não me digas que já não conheces o engaço! É um sequeiro de figos. Mas tu queres que te fale do Jorge Amado ou do sequeiro de figos?

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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