Camilo e o livro de S. Cipriano

Em Vinte horas de liteira diz-nos Camilo que perguntou a um seu companheiro de viagem, António Joaquim, se não tinha uma história de feitiços para lhe contar, enquanto a liteira ia de longada desde Ovelhinha (Marão) até ao Porto. E o interpelado respondeu-lhe que no género mágico sabia uma ocorrida com o seu tio João Manuel, a contas com o livro de S. Cipriano.

João Manuel vira o livro em mãos de um padre de Barroso. Acreditando piamente nos ditos de tão famoso oráculo, resolveram ambos dar-se à tarefa de esburacar as ruínas do castelo de Vermoim, a uma légua de Famalicão, com a ajuda de um assalariado de confiança. O padre garantia que um príncipe turco acossado pelos lusitanos fugira a sete pés, após ter enterrado ali os tesouros. E mais: que no reinado de D. Sancho II os descendentes do príncipe entraram em Portugal disfarçados de peregrinos; depois de farejarem o local, ficaram soterrados, porque o diabo, ou lá o que foi, fez que o castelo lhes desabasse em cima, logo que começaram a remover as lages depositárias do tesouro. Assim afiançava o padre de Barroso; assim acreditava o ingénuo João Manuel.

Juntamente com o assalariado cavaram, cavaram, mas tesouro de grilo. Até que acharam umas pedras que para o pobre cavador eram simplesmente calhaus mas para os sonhadores eram, numa tola miragem, ouro e prata fundidos. E Camilo, zombeteiramente, como é tantas vezes do seu gosto, conta: pernoitam ambos em Famalicão; a noite dá conselho; partem os dois tontos para o Porto; conversam com um ourives faceto da rua das Flores que lhes abona velhacamente a preciosidade dos calhaus; moita-carrasco com o tesouro; desfazem-se do cavador; vão sozinhos arrancar mais pedregulhos a Vermoim; o tio de António Joaquim pensa em fundar um convento de cem frades e ao padre de Barroso dá-lhe para chocar a ideia de ir a Roma e regressar com uma ou duas mitras, já que tinha um sobrinho padre como ele; cheios de calhaus partem para Madrid, bem à sorrelfa, onde um joalheiro os desenganou; fugiram escorraçados, desiludidos, envelhecidos; tudo por causa de S. Cipriano, o que levou João Manuel à demência e o padre a capelão de um regimento liberal.

“Nunca houve Cipriano nenhum que escrevesse tal livro…” diz com ar incerto António Joaquim a Camilo. Este tranquiliza-o: claro que não houve. O certo digo eu, autor deste texto é que o livro existe e dele se conhecem edições recentes. Lá figura um roteiro de tesouros, em regra localizados em pontes, castelos e outros monumentos da Galiza e Norte de Portugal. O nome de S. Cipriano anda-lhe ligado, devido a um romance hagiográfico sobre S. Cipriano e Santa Justa que se imagina tenham vivido no século II da nossa era. Cipriano, antes de se converter, praticava a magia (aliás tão em voga no Renascimento, Século das Luzes e também nos nossos dias, imagine-se) e tinha contrato com o demónio. Essa fama lhe terá valido o título do livro onde se reúnem copiosamente escritos alucinantes, como esconjuros, receitas, rezas, etc, que andaram (mais do que andam) na boca e na fé de muita gente.

Note-se que o hagiológio cristão fala de dez santos com o nome de Cipriano. Quem quiser saber mais leia, de Joaquim José Simões, o livro S. Cipriano. Tesouro da mágica. Também António Cardoso Cunha, ex-bispo de Vila Real, escreveu eruditamente sobre o assunto.1 E muitos outros, como Eduardo Ribeiro, que aventa a hipótese de o livro datar do século XIX. Camilo, pelo que nos diz, não leu o livro de S. Cipriano, nem sequer acredita na sua existência. À altura da publicação de Vinte horas de liteira, em 1864, não conhecia o livro de Joaquim José Simões, saído em 1875. Pensava mesmo que só havia dois santos Ciprianos. O tema dos tesouros escondidos (a que esta secção regressará) aparece em outras obras suas, como: Onde está a felicidade?, Noites de insónia, Novelas do Minho (A Morgada de Romariz), Noites de Lamego (História de uma porta), O Judeu e Doze Casamentos Felizes. Camilo era um relapso incréu em coisas de magia e feitiços que lhe proporcionam sempre um distanciamento estratégico em relação às personagens. O leitor sorri e gosta, pois claro.

  1. CUNHA, António Cardoso – S. Cipriano, Padroeiro de Bruxos e Feiticeiros. Humanística e Teologia. ISSN 0870-080X. Tomo IV, Fasc. 3. (1983), p. 251-279
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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