Carta para um amigo da cidade

Homem a ler uma carta por Tamor Kriwaczek
Homem a ler uma carta por Tamor Kriwaczek

A vida aqui decorre normalmente.
Nada de novo ou pouco.
O tempo anda na montanha,
circula como um bicho em fruto oco.

Que hei-de eu dizer? Que faltam
braços de homem para o campo
e há quem se ponha a entristecer
com sua inútil razão?

Não sei se entendes. Estamos em Dezembro
e por aqui apanha-se a azeitona.
Como os braços não chegam,
formam-se limos no fundo dos olhos.

É muito natural que não entendas.
Aí na cidade os hábitos são de vidro
e fala-se de nós como quem
espreita a neve detrás da gelosia.

Mas a vida decorre normalmente.
De tarde iludi as férias com duas
horas passadas no olival.
Suei. Provei que tinha músculos.

Sabes como se colhe a azeitona?
Bate-se nos ramos com uma vara comprida
e, sobre uns toldes, como se chovesse,
o ouro, ainda preto, vai caindo.

Estive a ponto de citar Virgílio.
Quase o via ao pé de uma giesta.
Coroado de alegria, de charuto,
botas brancas e ar de conselheiro.

Mas não citei. Impediu-me
uma velha que sofre de reumatismo
e, com esforço, com os dedos tortos,
apanhava a azeitona, sem um gemido.

Que hei-de eu fazer? Bem sabes
que não sou político nem posso.
Vou pensando e escrevendo
com a alma assente nos ossos.

E é tudo. Não me alongo. Estou com sono.
Aqui é meia noite verdadeira.
Ladram os cães. Há lua, com certeza.
Que paz, embora oca, a desta aldeia!

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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