Jogar é um direito da criança

Às vezes, os pais ficam muito surpreendidos porque deram ao petiz um cavalinho com rodas e ele, às duas por três, em vez de montar no cavalinho, encarrapita-se numa cadeira, pó, pó!, aí vai ele como o Ayrton Senna. Explicação: quando uma criança já não encontra qualquer novidade num objecto, abandona-o. Pode também acontecer que, ao abandoná-lo, transfira para outro objecto a sua função (a cadeira a servir de cavalo) ou uma função associada (a cadeira a servir de automóvel). A própria cadeira passa a ser cavalo ou automóvel, porque a criança já não vê nela nada de novo, porque tudo nela é redundante. Como se dissesse (palavras de Hutt): «que posso eu fazer com isto?» É esse o receio de certos pais, ao arquivarem a bonecada: é que a menina, enfastiando-se de certa boneca, pode virar-lhe a cabeça para trás, virar, virar, puxar, até arrancá-la. Também o Ayrton Senna não se ensaia nada para se pôr às marteladas ao cavalinho e fazer dele um bombo ou um monte de pedaços para o lixo. Às vezes, intervêm aqui factores de outra ordem, como a agressividade, pois «isto anda tudo ligado». Dizia Baudelaire que a maioria das crianças quer ver a alma dos brinquedos e é por isso que as destrói. Mas onde está a alma? – pergunta. É aqui que começa a tristeza, comenta o grande poeta francês, chegando às portas de uma filosofia que não pode deixar de pôr o problema da inquietação e da aventura humanas.

Como não vou fazer deste texto nenhum manual prático de orientação de crianças (onde está ele?), passo ao caso 2, só para dizer: Minhas senhoras e meus senhores, ao arranjarem a casa ou o jardim, um pátio que seja, pensem num espaço para os filhos. E olhem que o quarto do bebé não é nenhuma vitrina destinada às visitas.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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