Aos pequenos viticultores durienses

Casais do Douro (1987), por Georges Dussaud
Casais do Douro (1987), por Georges Dussaud

A VINHA, coisa breve. Fica num altinho. E o ti Quim vê ao longe o Marão onde se afundam muitas estrelas brilhantes e é por isso que aí nascem os ventos. Se tossir, levanta-se uma revoada de estorninhos. Estorninhos, ou melhor, um cacho de tinta roriz que solta os reflexos impacientes.

O GATO dormira no escano feito vinha, mesmo ao lado do pensamento velho do ti Quim, e um armário rangia, escrevendo a noite a giz. O comércio vai pagar mal as uvas, não compensando o trabalho. E até a luz se esconde atrás das nuvens como se estivesse a aparafusar os caleiros do outono. Mas que vindima triste é a incerteza! Vá lá que uma boa forma de matar o tempo é percorrer a vinha, geio a geio, ir por um, vir por outro, até encher o frasco das sensações. Destapa-o à noite, durante o sono, para as abelhas se libertarem suavemente.

APESAR DE TUDO, o ti Quim vindima alegremente, tendo apenas as suas abelhas por companhia.

ESPORAS DE OURO ao pescoço, ao ver as uvas súplices e pingonas do vizinho, pergunta se quer ajuda, mas ele, agradecendo a amabilidade, responde com o pensamento que lhe lia nos olhos: vendi o cartão do benefício, não farei mais do que uma pipoca e meia para gasto de casa – extintas as velas altas que o iluminariam – e o resto das uvas deixo-as aqui até ao Natal, até que o inverno as leve, até à puta que as pariu. O céu era um tambor. O cão das palavras afastava-se. E as lágrimas que afloravam aos olhos de cada um tinham as persianas corridas.

NO DOURO há quintas fartas. De tudo. Até de trabalhadores que não se apercebem de que quanto mais trabalham para os outros menos trabalham para si. As raparigas curvam-se ao pé das videiras. Os anjos porém já não estão ali. E uma mulher de oitenta anos, com as pontas secas a desfazerem-se em borboletas, ou lá o que eram, ria-se para dentro. O ti Quim ouvia tudo.

VINDIMA FEITA, eu, o cronista, rumei a uma vinha, que tal. No caminho cruzei-me com o ti Quim. Bom dia. Seria. Boa noite. Como o carro em que me deslocava era um 2CV ainda azul, não tive dificuldade em desprender-lhe a cor celeste e, com alguma curiosidade, fazer um espelho que pendurei nos olhos. Mas a cor celeste não me ajudou. Do que vi saliento: um coelho em tufinho de verduras sob o voo picado, seco, dum milhafre; e a solidão esculpida em grandes ondas.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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