Gordo, gordinho, matulão, o porco chega ao terreiro, conduzido por aquele que havia de lhe pôr termo aos dias de ceva. Mirones, apesar do chuvisco frigidíssimo. Motivo para estar ali um garrafão encarapuçado por um púcaro de alumínio. «Vai um?» «Claro!» Dantes, já lá vão uns anitos, quando eu assistia ao ritual, reparava em um ou dois molhos de palha que se destinavam a faxucar o animalzinho; agora olho, com alguma nostalgia, para uma botija de gás. O fumo da palha tinha outro encanto, carregada que era de símbolos sacrificiais.

Um facalhão, tachos, um balde e a senhora Otília, lesta, apesar da idade, a encher um regador no fontanário próximo. «Vamos a isto, rapazes» – voz de comando do senhor Álvaro Vilela que prende uma corda na boca do animal, segurando-a bem entre as duas queixadas. «E o banco? Traga o banco», diz a afanosa Otília. «Qual banco, responde o dono. – Vai ser aí em cima do muro». E eu a cismar: aquele bloco ancho de cantaria sempre tinha mais parecença com uma pedra de ara. A azeitona de uma oliveira por onde eu enfiava a máquina fotográfica estava cheia de olhos. Profundos. Vinham de onde? «Espere aí: deixe-me beber mais uma pucarada» – voz de um rapazola que esfregou as beiças com as costas da mão.

E eu a cismar: aquele bloco ancho de cantaria sempre tinha mais parecença com uma pedra de ara. A azeitona de uma oliveira por onde eu enfiava a máquina fotográfica estava cheia de olhos. Profundos. Vinham de onde?

O porco, desconfiado do sítio, tinha fossado uma borda de rango e leitugas, abrindo-lhe um sulco direito de sachola. Os cochilros que inundavam a parede espreitavam a cerimónia. Quatro homens aferraram-se ao colosso e foi então que o berreiro a sério começou. A proximidade do sacrifício é o melhor estímulo da sensibilidade. As mãos dos homens confundiram-se num momento com as da besta. A razão e a força. As queixas de um na ufania do outro. Sempre assim foi – pensaria uma leituga prostrada na lamiça.

Ao tempo em que a senhora Otília aparava o sangue ainda vivo num tacho, frémitos de cozinha alegravam o coração dos circunstantes. Alguém voltara os olhos, quando o facalhão perfurou a peitaça do animal. «Ora, não sejas maricas» – teve de ouvir. «Venha o maçarico, venha o maçarico». E o fogo acendeu júbilos novos nas sedas do ridente chacim. Amolecido com água quente, o couro foi raspadinho com lascas de pedra rugosa e, logo a seguir, pendurado na loja onde o tal maricas se pôs a farejar. Pudera! Já a senhora D. Maria José descia com uma travessa de bolos de bacalhau e fatias de salpicão a dizerem «comei-me». Sape, gato – voz a ralhar a um ougado, porque o senhor magarefe ainda estava rec-rec com a alimária. Sape, gato – repetiu a patroa, ao descer novamente as escadas com um açafate de trigo de quartos numa mão e uma caçarola de sangue cozido com alho picado na outra. Já o tal se havia desougado, fazendo mão baixa à travessa. Interim, Álvaro Vilela tinha aberto o formoso bestigo, de alto a baixo, e fazia a colheita do interior. Primeiro, as tripas, que encheram um balde; depois, a colada: fígado, pulmões e coração. Finalmente, os untos ou banha que, depois de atravessar três bilhardas à entrada da barriga, para efeito de arejamento, deixou a pingar de uma delas.

«Tens-me cá uma colada», ouvi uma mulher dizer ao tal que parecia maricas e que acabava de abichar uma rodela de salpicão. Vim a saber que o que ela queria dizer era que o outro era um mandrião. Comia e dormia. Como o porco. A gente riu-se. E, quando mestre Álvaro acabou de lavar as mãos, fiquei admirado por ele não meter à boca mais do que um bolo de bacalhau, recusando os pedaços quentinhos de sangue cozido – que para mim estavam uma delícia.

Foi neste inverno, em S. Lourenço de Riba Pinhão. Tal como no ano passado em Covelo, ali para os lados de Tábua, em casa do senhor José Domingos, onde se juntaram nem mais nem menos do que um jornalista, três escritores e um editor. O que quer dizer que…

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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