Meditação com um menino

“Aonde vás, niño?”
Luís Alberto de Paraná

1

Aonde vais, menino,
com esse olhar que se alonga,
alonga
como se fosse dar a volta ao mundo?
Quantos anos tens? Que idade
futura?
Quem te deu esses olhos
e pôs uma bárbara estrela
a devorar o silêncio?

2

Podias ter ficado na rua
com os outros meninos.
Há sempre um jogo,
um nada-mundo,
para os meninos como tu.
Mas preferiste fazer perguntas
e acompanhar-me na colina
donde se avista o sol
com o seu capuz de lâminas fulgentes.

3

Não há dor maior
do que responder a uma pergunta
com outra pergunta.
Eis-me de pé no musgoso rochedo
e sobre mim
o semicírculo do nada-saber
que me converte
num estranho sinal interrogativo.

4

A teu lado estou, menino
de olhos redondos e escuros
como duas cisternas.
Que sei eu da estrela errante
que, ontem à noite,
vimos cruzar lentamente o espaço?
Que sei das grandes cidades
que ardem longe,
longe?
Do amor e da falta de amor?
Da vida? Dos homens
que partem com ou sem destino e
não regressam?
Que sei eu, que sei verdadeiramente
para sossego,
do teu belo corcel de patas azuis?

5

Antes ficasses na rua
com os outros meninos.
O pensamento não é melhor jogo
do que o teu jogo de cabra-cega.
Terás tempo de saber, menino,
de saber tudo sobre estrelas,
cidades
e homens que vão e não voltam.
Se o souberes,
talvez as perguntas se transformem
em pesados cachos sanguíneos.

6

Dou-te a minha sabedoria
por um olhar
não contaminado de pensamento.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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1 replies on “Meditação com um menino

  • Alves de Castro

    …0 menino ia ajudar à missa, na capela da Quinta do Roncão; e tinha 15 anitos, sendo as perguntas mais que muitas, no alto do cume da encosta do Douro, ainda selvagem, com verde e deslumbrante vista do seu amplo vale, tendo então o Poeta expressado a sua estranheza pelo recente dizer de Prado Coelho de que a Terra era um Planeta Azul, o que o menino veio a saber, tempos volvidos, antes mesmo de lhe darem uma farda e homens , que consigo foram, nem todos voltando, senão como “pesados cachos sanguíneos …não obstante a sem contaminação recebida sabedoria do Poeta.

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