Paisagem cultural duriense

Estou há meia hora debaixo da ramada, a quarenta e cinco passos do portão, atento ao que vai na rua. Ainda não vi um homem a cavalo: vê-se cada vez menos. Pouca gente e alguns carros — sinal de quê? Um rapaz de pólo sanguíneo atrai-me a atenção: atira com uma bola ao ar, não a apanha por qualquer motivo e desaparecem os dois. Carros e pessoas — invólucros, uma espécie nova de cartuchos que fossem vertendo a mercearia. Aquela mulher tem o andar cheio de rasgões por onde se escapam as manhãs. E duas crianças chilreantes param um pouco e põem-se a brincar à cama do gato, julgo que sim, pois um bando de pardais levanta voo de uma amendoeira. Tenho a impressão de que alguém me vê e por isso não sei se sou eu ou os passantes que vêem as sombras no fundo da caverna platónica. Talvez eu, mas garanto que estava e estou de frente. Ora, é hora de almoçar. Sim, sim, já vou, digo à minha mulher que me chama da janela. Ao subir as escadas, noto que a sombra caminha à frente e vejo o portão de mais perto: lá vai um camião bojudo, silvante, réplica sem dúvida do asteróide 2002 NT7. O mundo está cheio de réplicas. É com elas. Apetecia-me ouvir a este respeito os melros que têm ninho na figueira e me lambiscaram já quase todos os figos. Bom apetite, meninos, e estai sossegados que eu, embora pareça, não sou nem faço parte de nenhum asteróide, pelo menos até ver.

Texto sem título incluído em Entre quem é (parte III – A fonte de Bandúsia). Publicado no jornal Notícias do Douro (3-6-2006) com o título em epígrafe.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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