O caldeireiro

Caldeireiro
Caldeireiro

Quando o tempo começa a tartamudear e os primeiros calafrios ameaçam a folhagem, o caldeireiro assoma à boca da rua. Aí vem ele. Da mão pinga-lhe uma sertã em cujas costas martelinho ligeiro, repenica, como se ela estivesse com soluços. Todo o bicho-careto, especialmente o gado fraldeiro, mete o nariz por janelas e janelos, atiçado pela aleluia e a fazer contas de cabeça a potes, tachos, almotrigas e outros lataréus.

– Aí está ele.

– Ele quem? – pergunta a Isaltina que é um não-te-rales.

– O caldeireiro, posma.

– Ele passa aqui, minha lambisgóia – responde no jeito de espantar uma lagartixa.

“Caldeireiro na terra, água na serra” – dizem alguns. O tempo de facto vai de morrinha e o artista assenta arraiais debaixo de uma faia onde entre dois ramos baixos põe um oleado telhadeiro. Não vai às portas buscar os trastes, é o vais, quem quiser (ó freguesia, ó freguesia) é levar-lhos ali, que depois até voltam pelo seu pé – novinhos em folha, como aquele amigo que ali está, depois de fazer a operação à hérnia. É o que eu lhe digo, minha senhora, qual é a sua graça? Ah!, Rosa, muito bem, ou antes, muito mal, a minha mulher que Deus haja também se chamava Rosa, era uma rosa como a senhora. Eh freguesia, deixem os potinhos e o mais com os nomes dos donos, por mor das trocas, é escrever com esse giz, pois. Olhe, minha rica senhora, só agora é que eu reparei: a senhora tem mesmo a cara da Senhora da Graça que é a padroeira cá da terra, vá-me ali à taberna buscar um quarto de trigo com chouriço, que eu depois dou-lhe o troco, eh freguesia! Oh, oh, esse tacho já não tem conserto, está velho e ferrugento e parece a boca dum sino, não aguenta o fundo, olhe, patroa, encha-o de terra e plante-lhe uma sardinheira, isso, pelo Natal já vai ter sardinhas novas.

O caldeireiro era um homem sem nome, só caldeireiro. Dantes vinha, sabe-se lá donde vinha, numa carroça com a padiola das ferramentas e outras coisas dentro. Ainda usava carocha de carvão e tinha sempre uma fogueirinha ao lado para a ir abastecendo. A gente até gostava mais desse ferrangacho, sempre botava umas chispas, quando lhe abufava – diz uma. O que é preciso, é chispa – diz outra. É o que te falta – diz um passarolo de bigode. Eh freguesia. Pois é, ninguém sabia donde vinha o artista, vinha do mundo, e até se ouvira que tinha um filho em cada aldeia por onde passava, agora já não de macho e carroça mas de motociclo com caixa atrás, onde trazia a botijinha de gás, o ferro de soldar e a solda, pouco mais. Durante o trabalho, às tantas dava-lhe para embezerrar e respondia seco a quem lhe chamava careiro: caro é este material, que o compro a bom preço. Mas, pouco depois, emergia do abismo, lá o que fosse, e voltava para a luz.

– Saia do chuvisco, menina, que lhe nascem pelos.

– Ora porquê?

– Então não vê que a sua terra é tão, tão fofinha que com a água a sementeira salta logo cá para fora?

A gente ria-se, dizia que o velhadas estava cada vez mais pilhérico e era com gosto que o via deitar um remendo, batendo firme nos cravos de alumínio. Não consertava guarda-chuvas nem amolava facas e tesouras, pois, como ele dizia, e toda a gente sabe, homem que toca muitos instrumentos não toca nenhum na perfeição. Olhe-me para esta panela: nova, novinha, tenha a senhora que lhe botar que por ela fico eu, dou-lhe garantia até aos netos dos seus bisnetos, quer mais?

Ao outro dia, o caldeireiro sumia-se. Só raramente ficava mais do que um dia em cada terra. Sumia-se no chuvisco, entre as árvores da serra. Percorria, ainda percorre, Portugal de Norte a Sul, pois tem um filho em cada povoado, até nos bairros pobres das cidades.

Sinto-o agora no meu escritório, ouço-lhe a música sertaneja no teclado da máquina de escrever, adivinho-o à minha frente, derreado ao peso dos anos. Tantas rugas, mestre, nesse rosto, nessas ideias! “A vida para alguns é fácil, mas para outros tem muitos espinhos”. 1 Se tem! Meu caro Aníbal Lopes, de Gueifães, aí para a Maia.

  1. Fala do caldeireiro Aníbal Lopes, de Gueifães, incluída em Artes e Tradições da região do Porto, Terra Livre, D.G.C.S., Lisboa, 1985
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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1 replies on “O caldeireiro

  • Orlando Miranda

    Nas aldeias do Marão Ocidental também havia um latoeiro que, antes, andava de aldeia em aldeia, não se constando que tivesse um filho em cada uma, embora esses rumores não passassem despercebidos, dormindo uma noite em cada uma delas, normalmente nos palheiros com uma manta que o dono lhe emprestava, usando os fenos secos como colchão porque naquela época do ano os palheiros estavam recheados. Mas, na segunda metade do século XX, já tinha a sua loja para trabalhar e soldar as “latas”, ou “folhas” donde saiam as candeias de petróleo, as almotolias as bacias, os cântaros para ir buscar a água à fonte do povo, os cântaros e os almudes para o vinho e outros objetos que faziam parte do artesanato destas aldeias
    Também havia o caldeireiro, mas este, em local fixo, trabalhava mais o cobre, donde saiam os alambiques e também trabalhava o latão.

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