O Caminho de Santiago

Entende-se por Caminho de Santiago a via que os peregrinos percorriam e percorrem até Santiago de Compostela em cuja catedral se crê estar o túmulo do apóstolo S. Tiago. De Portugal, segundo estatística dos anos oitenta deste século 1 , os devotos não afluem em tão grande número como é o caso de franceses, alemães e belgas. Compreende-se a preferência dos católicos portugueses por Fátima, desde as aparições em 1917. Mesmo assim, os romeiros compostelanos entre nós ainda são muitos, calcorreando os caminhos tradicionais como os que passam por Vigo e Ourense, já na Galiza; e sabe-se de locais bem ligados a essa passagem: por exemplo, uma casa que servia de hospital em Vilar de Perdizes, sendo ainda de mencionar Valença. Portela do Homem, Pitões das Júnias, onde frades galegos de Osseira prestavam acolhimento e orientação, e Chaves, também com um hospital para o efeito. Pelo norte do país as imagens e altares a S. Tiago abundam, devido a tão caminheira devoção. Um outro caminho, esse já celeste, era o que servia de guia aos olhos: a Via Láctea, que por isso se tornou conhecida como Estrada de S. Tiago.

Tudo começou em 772, quando, segundo a tradição, uma estrela indicou na Galiza o lugar do túmulo do apóstolo, em Padrón, e aquele para onde devia ser mudado, em Santiago de Compostela, cidade que deve o seu nome, provavelmente, a “campus stelae” (campo da estrela), a partir desses tempos. Diz-se que o primeiro visitante ilustre foi Gotescaldo, bispo da cidade francesa de Le Puy, que se fez acompanhar de luzido séquito, em 950. E os concheiros (assim designados, já veremos porquê), foram-se multiplicando através dos anos, até atingirem, pelo século XII, o número de cerca de 500.000. A palavra concheiro vem de concha-vieira, insígnia que os peregrinos usavam nos chapéus, capas e sacos de viagem. As vieiras eram adquiridas em Santiago para serem exibidas no regresso como testemunho de peregrinação. Testemunho que, às vezes, podia muito bem ser falso, como desconfia Jorge na peça “Frei Luís de Sousa“, de Garrett: “A vieira no chapéu e o bordão na mão, às vezes não são mais do que negaças para armar à caridade dos fiéis“.

As vieiras eram adquiridas em Santiago para serem exibidas no regresso como testemunho de peregrinação. Testemunho que, às vezes, podia muito bem ser falso, como desconfia Jorge na peça “Frei Luís de Sousa“, de Garrett: “A vieira no chapéu e o bordão na mão, às vezes não são mais do que negaças para armar à caridade dos fiéis“

Tão importante foi o caminho que o Conselho da Europa o distinguiu, em 1987, como o Primeiro Itinerário Cultural Europeu, transformando-se actualmente a vieira em símbolo especial que é uma concha amarela sobre fundo azul, as cores da bandeira da UE. Mesmo apoiadas em lendas, e sobretudo por isso, pois elas representam o fundo significativo da alma popular, as instituições culturais devem funcionar com independência e compreensão. As vias da cultura não são as da ciência, da razão pura, da verificação crítica, o que aliás tem sido recentemente bem demonstrado pela importância crescente dos congressos de medicina popular em Vilar de Perdizes.

O apóstolo S. Tiago, no entanto, existiu mesmo: foi um dos doze que acompanhou Cristo e um dos dois Tiagos entre eles, conhecido por S. Tiago, o Maior, e qualificado no Evangelho de S. Marcos como “filho de trovão”, dado o seu carácter impulsivo. Foi decapitado em Jerusalém, às ordens de Herodes Agripa I, pelo ano de 44. A tradição encarregou-se de matizar-lhe os prodígios, com duas vindas a Espanha: a primeira ainda em vida, sucedendo perto de Saragoça ter-lhe aparecido Nossa Senhora num pilar de mármore (daí o belo santuário de Nossa Senhora do Pilar, junto do rio Ebro); e a segunda, tomada como definitiva, já depois da sua morte – os seus restos mortais teriam vindo de Jafa para Iria Flavia (Padrón) e daí posteriormente trasladados para o lugar da futura cidade de Santiago de Compostela, como se refere atrás. A visita ao seu túmulo foi, ao longo dos tempos, uma das que mais atraiu os seus crentes, logo a seguir à que se fazia e faz aos Lugares Santos da Palestina. E S. Tiago facilmente se tornou o patrono de Espanha, tido como seu defensor na guerra contra a mourama. Contra a mourama e não só: no relato da batalha de Aljubarrota conta Fernão Lopes que para os portugueses e castelhanos “seuu apelido (grito de guerrra) era Portugal e São Jorge e dos imiguos Castilha e São Tiaguo”. Vá lá que, ao menos quanto a este pormenor, os espanhóis saíram vencedores, já que S. Tiago era um santo histórico, enquanto S. Jorge não passava de uma fantasia tradicional, embora então ninguém o suspeitasse.

A imponente catedral de Compostela começou a ser edificada no século XI. Por essa altura e nos séculos imediatos a ela acorriam os concheiros, às multidões, facto de que resultaram directamente as cantigas de romaria (de amigo) como, entre outras, uma de Airas Corpancho que começa assim:

De fazer romaria, pug’en meu coraçom
a Santiag’un dia por fazer craçon
e por ueer meu amigo logu’i.

Este Ayras trovador tinha pelo visto obesidade ventral (corpo ancho) mas finura de observação: as donzelas eram dadas a dissimular o negócio de amores com uma visita ao santo. Compreende-se.

  1. O autor refere-se ao século XX.
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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