Oh meu rico S. João

Homem, por Luís Borges
Homem, por Luís Borges

Ao meu espírito, como aos de toda a gente, dá-lhes às vezes para fazer ventolas no passeio dominical. Sentida a guinada, desvio-me, como não pode deixar de ser. Ainda bem, se o imprevisto é consolador. Ir à Serra da Estrela e parar no caminho para o comes-e-bebes. O sol a derreter o vale apinhalado como a um caçoilo de resina. Odores bravios. Deixei os amigos a devorar futebóis na TV e esgueirei-me por uma caleja ladeirenta, bem acompanhado por um reguinho de água. De onde conheço este velho cuja sombra de castanheiro solitário me interrompe? E ali se fez o diálogo com fundo de águas em torcicolos rumorejantes.

– Era aí nesse buraco. A cascata fazia-se aí. Fazia-a eu. Eu e os outros.

Reparei no vão de uma escada de pedra, que se prolongava debaixo de uma varanda de madeira já carcomida. A calceta era recente, mas o fraguedo teimoso aflorava junto aos pardieiros.

– E já não se faz porquê?

As mãos dele regressavam na prata dos olhos. Os tempos eram outros. Outros? – perguntou ironicamente um pardal que pousava uma velha nuvem no beiral do silêncio que nos rodeava. A ruinha – disse-me – era uma estrumeira, do cima ao fundo. O estrume é necessário – sorriu por dentro. Mas, antes do S. João, a gente varria a merdice e ia roçar umas carradas de mato. O chão ficava como novo. E trazíamos também ramos de árvores para a cascata. O buraco limpava-se muito limpinho. Até luzia antes da luz. E trazíamos ainda um molhinho de ervas – alfazema, poejo. belas-luzes e amargaças – e outro mais ancho de rosmaninho e alecrim, aí está, para a fogueira. Que não era aqui, é o eras, mas num terreiro acolá, mete-se por aquela canelha – disseram as mãos.

– E a fogueira já não se faz porquê?

O cacaréu do tempo a cair, a partir-se, e o azeite a subir às palavras, mais leve do que elas.

– Durante uns anos a fio era eu e mais dois, que já morreram. Íamos por essas casas e juntávamos uns tostões. Para o azeite, para as grisetas, e para o papel de seda das lamparinas. Luminárias coloridas que se suspendiam de arames esticados sobre a viela. O padre, já sabia, tinha de emprestar o S. João, olha se não emprestas. E à tardinha, depois de o sino deitar ao vento as ave-marias, rapazes e raparigas iam em farrancho animado buscá-lo ao altar.

“Oh meu rico S. João, / a tua capela cheira a cravo, / cheira a rosa, cheira à flor de laranjeira”. E também: “Ai orvalhadas, orvalhadas” , etc. “Ai repapoila, repapoila”, por aí fora.

Oh meu rico S. João, a tua capela cheira a cravo, cheira a rosa, cheira à flor de laranjeira.

– E os rapazes e raparigas já não vão porquê?

O velho levantou-se do poial. De onde conheço eu este homem, este espelho incrustrado no fundo da memória, à entrada de cada túnel?

– Aqui é onde era a cascata. Ao fundo e aos lados, está a ver?, ramos de árvores, quase só pinheiro, pinheiro com pinhas, pois. E vinha de lá uma rampinha aos degraus para que toda a gente pudesse ver o efeito, ora aí está. Ao alto, o S. João mais o seu cordeirinho, em cima dum penedo entre jarras de flores. E água a correr por uma calha de madeira, desde aquele canto até este: sumia-se na estrumeira e lá ia com Deus pela rua abaixo. Aqui, vê?, era costume prender um anho, que ficava muito bem, mas, quando lhe dava para berrar, cuidado lá com ele, tínhamos de o levar ao dono, aí está.

– E a cascata já não se faz porquê?

O ouriço do tempo a abrir-se. No buraco cabiam mais coisas, muitas, a lua, estrelas, sonhos, anjinhos gorduchos, até brinquedos e ovos para o leilão. E no larguinho, a meio da canelha, saltava-se à fogueira. Que rico cheirinho te botavam as ervas, amigo! Metia-se cá dentro. E dançava-se. Gente rapioqueira. “ Estas é que são nas saias, / estas saias é que são. / São dançadas e bailadas / na noite de S. João “. E, às tantas, quando a gente não contava, podia aparecer uma rusga com bombos e ferrinhos. “ Fui ao S. João a Braga, / de Braga fui ao Bonfim / e vi tudo embadeirado / com bandeiras de cetim./ E há-de ser, há-de ser e há-de ser: / as raparigas é que hão-de vencer. “ Ora queriam vencer as raparigas ora os rapazes, já se vê.

– Olhe, eu nunca fui a Braga nem ao Bonfim, por falta daquilo com que se compram os melões, aí está. Mas lá é que o S. João deve ser uma festa de truz. Melhor do que aqui, muito melhor.

– Melhor porquê?

– Ora por que há-de ser? Dinheiro, dinheirinho…

A resina da tarde acendia-se nos gestos daquele homem que talhava os mistérios da vida, as nostalgias da vida. O sol reduzido ao bruxuleio duma lamparina.

– O balão, pois, ah, o balão só o fazíamos subir lá pràs tantas, meia-noite, que era prò pessoal não arredar pé, aí está.

Quando acabou o futebol televisivo, os meus amigos foram-me descobrir com o simpático ancião, a beber junto de um pipo e a comer broa com coelho do monte, sabor a carqueja. Ganhámos, pá, ganhámos – conclamaram, arrotando a uma cerveja maluca. Mandei-os bugiar.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

Saber mais…