Ora atenção a S. Bartolomeu (ou Bertolameu, como também se diz em S. Bartolomeu do Mar, a uma cancha de Esposende) cuja festa se aproxima e de quem vou hoje falar de raspão, ao bulir-me pitoresca parlenda que, espraiada entre o responso, a encomendação e a xácara, eu conhecia em criança como remédio contra coisas ruins que podem sobrevir (ou subvir) de noite, consoante me diziam. Há outras rezas, aparentemente mais apropositadas, como esta que Leite de Vasconcelos diz ser de Foz Côa: “S. Bartolomeu me disse:/ Que dormisse e descansasse,/ Que nenhum medo tomasse/ Daquele malvado,/ Que tem a mão furada/ E a orelha retonada”. 1 Bonita, sem dúvida; mas hoje, como há oito dias, apostei na experiência pessoal que não vou desperdiçar – nada disso, bem abonado que ando por conspícuas teorias antropológicas.

Pois é: quanto à tal oração, persignava-me, rezava-a e pronto: sono santo (só no santo). Mas o tempo foi-me ratando a composição, a começar pelo fundilho: só me lembravam mesmo os seis primeiros versos que acho uma belezinha. Bem matutei, bem matutara, quanto à ala renitente: tive de recorrer à minha irmã que, por mais que escarafunchasse no mesmo sítio da mioleira que eu, não foi além de mais três versos e meio. Ora bolas!: falta de uso, está visto – pus-me a cismar. É assim que se atrofiam certas funções e o aprendido se vai afundando no “rio do negro esquecimento e eterno sono”.

“Vou ali à senhora Noémia”, lembrança feliz da mana, que confiava na piedosa vizinha como num sacramento. Cumpriu. E foi então que o S. Bartolomeu, marinheiro que é, emergiu completamente das ondas, bonito, pois claro, e não feio como quer Moisés Espírito Santo. “Barbudo e feio” – assim o identifica o professor da Universidade Nova, dizendo ainda coisas mais desagradáveis, ao que Franquelim Neiva Soares, também professor universitário e tomado de pundonores apostólicos, veio a ripostar, assunto que fica para o número a seguir. Para já, vamos ao responso ou encomendação em que o santinho (um dos doze apóstolos abancado no quadro de Leonardo da Vinci) arranjou uma súbita companhia elegantíssima, nada mais nada menos do que Santa Catarina, que julgo ser a mártir do século IV, patrona dos intelectuais e verduga dos tiranos:

Oh meu S. Bartolomeu,
a vós me encomendo eu.
Sois marinho, sois alcaide,
vós prendeis e vós soltais.
Prendei os meus inimigos,
não me possam fazer mal.
Vós sulcaste o mar sagrado
pelo rio de Jordão,
cum pinheirinho na mão,
uma rebelinha no braço.
Três anjinhos vístens estar,
vístens estar Santa Catarina
cuma pedra pintadinha.
Santa Catarina vos disse:
quem esta oração disser
em um ano, dia a dia,
verá as portas do céu abertas
e as do inferno nunca as veria.

Comparando a melopeia inicial com alguma irregularidade do prosseguimento, entendo que também o tempo fez das suas na memória da senhora Noémia. Mantive “sulcaste”, por sulcastes, e “vístens”, por vistes, porque é assim que por vezes se diz na aldeia (Castedo do Douro). Tenho uma vaga ideia de que em pequeno eu dizia “prendeide” e não prendeis, “soltaide” e não soltais, pormenor que não quero omitir. “Rebelinha”, é de forma e significado duvidosos para mim. Minha irmã, na sua primeira tentativa de lembrança, pronunciou “donzelinha”. Eu – disso tenho já a certeza – dizia “rodelinha”. Porquê rodelinha? – interrogou-me, presentemente. E apetece-me recorrer à psicanálise para conjecturar que a confusão de vocábulos, se é que de facto existiu, significava a satisfação simbólica de algum desejo de lambisquice que as condições económicas familiares recalcavam. E não será “rebelinha” o mesmo que “rabelinha”, que desse modo se poderia considerar o diminutivo de “rabela” – rabiça do arado, remo grande do barco rabelo ou, por sinédoque, o próprio barco?

Oh meu S. Bartolomeu, para onde te levo eu nesta barca de recordações! Quando comer a primeira rodela de ananás, lembrar-me-ei de ti.

  1. Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa. Tentame de sistematização, por Viegas Guerreiro et alii, VII, p. 328.
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

Saber mais…