Pinhão, 8,20

Gare do Pinhão (1985), por Georges Dussaud
Gare do Pinhão (1985), por Georges Dussaud

Em Junho, a fruta começa a apetecer.
Um homem passeia no cais e debulha
uma nêspera com ar de quem faz horas.
8,20 – diz o relógio. Espera-se.
O comboio, um monstro de cem bocas,
pardo e caduco, fumega lentamente
como um charuto abandonado.
Manhã de vidro. Vê-se a montanha,
tem de se ver; e sabe bem
pôr os olhos lá no alto e deixá-los
escorregar pela vinha, deixá-los
de penhasco em penhasco, até à ponte
de coxas graníticas e feias.
O homem da nêspera está junto
duma gaiola de pombos correios.
– Não bula – diz um carregador
com ar de Presidente da República.
Caixas, molhos de alface, um cabaz
de cerejas, sacos e mais sacos
e um bando de pardais numa roseira.
Continua a esperar-se. Pouca gente.
Os homens de fato-macaco olham-nos
como a encomendas sem valor.
O que importa – está-se mesmo a ver –
são as caixas e os sacos. Caixas e sacos.
O homem da nêspera tem bigodinho grisalho.
Lá anda ele. Pôs um cigarro na boca
e os olhos num rapaz que toca gaita de beiços,
cara ao alto como se olhasse um avião.
O rapaz tem certas semelhanças com o Marceneiro
e uma flor vermelha no casaco desbotado.
Que fresca melodia, correndo
aos saltinhos pelo pavimento
de cimento e enrolando-se toda verde
num ramo de laranjeira e crescendo,
crescendo como um fruto dourado!
Partiiiiiida – grita uma voz de lâmina.
Partiiiiiida. Volto-me. Lá se foi o homem da nêspera.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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