Provérbios da vinha e do vinho

Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam
Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam

O uso corrente da língua torna o provérbio como sinónimo de ditado popular, adágio, anexim e rifão. Alguns linguistas têm feito a distinção dos termos, valendo a pena observar que o anexim apresenta geralmente forma rimada e carácter moralizante (ex.: quem o alheio veste/ na praça o despe) e o adágio, voltado também para a prática, é marcado por uma intenção espirituosa (ex.: vozes de burro não chegam ao céu; nariz de homem, cu de mulher e focinho de cão não conhecem Verão). Ficam o provérbio, o rifão e o ditado, como equivalentes; constituem nas suas linhas gerais uma observação fina e cintilante do viver, apoiada na experiência, sem terem necessariamente cunho apelativo.

Tomemos entretanto o provérbio como designação geral dos significados anteriores. E, se classificarmos os jogos de físicos, mentais e artísticos, ele encaixa-se bem entre os segundos, pelo que revela de graciosidade e de aposta nos caminhos certos da vida, tendo ainda em consideração a sua índole frequentemente alegórica e plurissignificativa, a qual permite uma vasta aplicação. Receptáculo disponível da sabedoria popular acumulada, refinada e verificada através do tempo, revela uma verdadeira atitude filosófica, embora circunscrita ao nível do conhecimento empírico, experiencial e não sistemático, atitude aliás comum a uma boa parte de outras criações do povo como cantigas fábulas, contos e até adivinhas e anedotas.

No campo temático da vinha e do vinho as sentenças proverbiais são inúmeras. Vou aqui apresentar algumas, a começar por duas em latim.

  • In vino veritas (no vinho está a verdade, isto é, o vinho leva as pessoas a dizerem o que pensam e sentem).
  • Bonum vinum laetificat cor hominis (o bom vinho alegra o coração do homem). Há quem acrescente: etiam mulieris (e também da mulher). Este provérbio nasce de uma passagem bíblica (Eclesiástico, XL, 20) que é a seguinte: Vinum et musica laetificat cor (o vinho e a música alegram o coração). Note-se que o texto acrescenta: e mais do que ambos o amor da sabedoria.

A expressão in vino veritas está muito ao gosto do latim clássico na sua elegante concisão, mostrando ainda um aparente duplo sentido de que o primeiro é ser o vinho a própria verdade: o vinho ou o estonteamento intelectual ante a penosa clarividência quotidiana. Di-lo-ei um provérbio de notável agudeza. Tanto ele como os que se lhe seguem ganharam as graças dos cinco continentes, utilizando-se mais, sem dúvida, nos países latinos. Dos provérbios que se expõem a seguir há também variantes noutros países, mas exaram-se aqui nas formas colhidas de norte a sul de Portugal, ainda que se lhes conheçam algumas pequenas diferenças.

  • A vinha escave-a quem quiser, pode-a quem souber, mas estrume-a o dono.
  • Abril frio: pão e vinho.
  • Aceita sem receio azeite de cima, mel do fundo, vinho do meio.
  • Aduba as terras e verás como medras.
  • Antes das sopas, molham-se as bocas.
  • Ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo.
  • As pulgas vêm com as favas e vão com as uvas.
  • Até ao lavar dos cestos é vindima.
  • Antes para nós um baguinho que dois figos para o vizinho.
  • Até ao S. Pedro tem o vinho medo.
  • Trabalhar como um galego (nos séculos XVIII e XIX eram muitos os galegos que demandavam o Douro onde trabalhavam em serviços duros, com surribas e construção de paredes de suporte das terras nos socalcos).
  • Bebidas fortes: homens fracos.
  • Beber vinho não é beber siso.
  • Bom comer: três vezes beber.
  • Bom vinho: má cabeça.
  • Bom vinho: bom vinagre.
  • Pão de hoje, carne de ontem e vinho do outro verão fazem o homem são.
  • Carne que baste, vinho que farte e pão que sobre.

Os provérbios vão continuar no próximo número, mas a propósito deste último vou contar o que me contaram em Bragança: “Há uns bons anitos, dois velhotes entraram numa tasca e um deles, sem mais aquelas, disparou para o tasqueiro: olhe lá, bote aí dezanove tostões de vinho e um tostão de pão. Comentário do outro: essa agora!, e para que é que queres tu tanto pão?”.

Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam
Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam
  • Casa onde caibas, vinha quanta bebas, terra quanta vejas (provérbio que evoca um tempo em que o negócio do vinho e as condições materiais de vida não primavam certamente pelo desafogo, embora o sonho de larguezas tivesse a chama bem alta, como quem diz que o futuro é na terra que acontece e por isso quanta mais melhor. Aquilino Ribeiro dá-lhe algum realce n’ O Malhadinhas).
  • Chuva de S. João tira o vinho e o azeite e não dá pão (que o digam os agricultores no fatídico ano de 1988).
  • Com pão e vinho já se anda caminho.
  • Com melão vinho de tostão (no tempo em que o tostão circulava, tinha nervo e valia a bonita soma de cem réis. Note-se que em 1850 um almude de vinho corrente valia cerca de 300 réis. Vinho de tostão quer dizer vinho do bom, isto é, caro).
  • Com pêras vinho bebas. (Com pêras e também com figos, frescos ou secos. Não é que eu fui ensinado, desde pequenino, a não beber vinho com figos frescos?! Qualquer indivíduo da minha aldeia os terá comido pela torreira, bebendo-lhe até lhe chegar com um dedo e depois… Azar. O diz-se deu crença e pronto. Têm piada certas tradições muito localizadas).
  • Com o vizinho casa o teu filho e bebe o teu vinho.
  • Comamos e bebamos e nunca mais ralhamos. (Até parecem os agricultores a ilustrarem uma exposição ao primeiro-ministro).
  • Come como são, bebe como doente.
  • Conselho de vinho é falso caminho.
  • Depois de comer e beber, cada qual dá o seu parecer.
  • Dia de S. Tiago, pinta o bago.
  • Dia de S. Lourenço, vai à vinha e enche o lenço.
  • Dia de S. Martinho, fura o teu pipinho.
  • Dia de S. Martinho, prova o teu vinho.
  • Do vinho e da mulher livre-se o homem… se puder.
  • Gaba-te cesta rota, que vais para a vindima.
  • Jogo e bebida: casa perdida (Francisco Manuel de Melo junta aos dois pretensos vícios um terceiro: “Era dito de um discreto que vinho, jogo e tabaco se deviam vender nas boticas como mezinhas”).
  • Maio couveiro não é vinhateiro.
  • Maio hortelão: muita parra e pouco pão.
  • Meias só para os pés. (O povo troça frequentemente dos copos com vinho até ao meio, dizendo que não usa gravata, e igualmente dos copos pequenos. Conta-se que pessoa bem humorada estava à mesa, durante una taina, metendo-lhe espécie o copo que tinha à frente, pequerrucho. E comentou: olá!, tu és garrano mas eu faço-te andar a galope).
  • Meia vida é a candeia; e pão e vinho a outra meia.
  • Mel novo, vinho velho.
  • Muita parra e pouca uva.
  • Mulher que muito bebe tarde paga o que deve.
  • Não é com vinagre que se caçam moscas.
  • Se não arrancas a silveira, sobre a videira.
  • Não vás sem a borracha a caminho e, se a levares, não seja sem vinho. (Borracha ou bota – pequeno saco de couro com bocal de madeira – hoje, o plástico usa-se mais – para vinho. Veja-se esta quadra do cancioneiro popular: “O primeiro amor que tenha/ há-de ser um arreeiro,/ que não tem bota sem vinho/ nem bolsa sem dinheiro”).
  • Ninguém se embebeda com o vinho da sua adega.
  • No S. Martinho, lume, castanhas e vinho.
  • O apetite é o melhor dos temperos.
  • O bom mosto sai ao rosto. (Põe a gente coradinha, aí está).
  • O bom vinho arruína a bolsa e o mau estômago.
  • O bom vinho faz bom sangue. (Ouçam bem os responsáveis pela taxa de alcoolemia com que ameaçam os motoristas).
  • O bom vinho traz a venda consigo. (Não é o que dizem os vitivinicultores portugueses, ameaçados pela sacarose da UE).
  • Bom vinho escusa pregão; bom peso faz vender o pão. (Tretas, ó Rosa! Isso era dantes).
  • O medo guarda a vinha que não o vinhateiro.
  • O pão pela cor e o vinho pelo sabor. (Pelo sabor e também pela cor e pelo aroma, como aqui se há-de dizer, a respeito das qualidades organolépticas do vinho do Porto e do modo como deve ser bebido, a fim de lhe sentir a “alma”).
Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam
Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam

Quando me dispunha a completar a resenha simples de provérbios iniciada dois números atrás, ocorreu-me um texto de Karl Popper que me parece vir a talhe de foice. Ei-lo: “Todos os homens são filósofos. Mesmo quando não têm consciência de terem problemas filosóficos, têm, em todo o caso, preconceitos filosóficos. A maior parte destes preconceitos são teorias que aceitam como evidentes: receberam-nas do seu meio intelectual ou por via da tradição”. Ao falar de preconceitos, parece que K. Popper arreda do filosofar espontâneo a capacidade reflexiva, tomando-o como fonte e rol de opiniões não fiáveis. Mas ele acrescenta: “Dado que só tomamos consciência de algumas dessas teorias, elas constituem preconceitos no sentido em que são defendidas sem qualquer verificação crítica, ainda que sejam de extrema importância para a acção prática e para a vida do homem”. 1

Quanto aos provérbios, há que reconhecer-lhes pertinência filosófica, sem curar de saber se se trata de alta ou de baixa filosofia, já que a filosofia é só uma e, contrariamente ao que dizem Bachelard e outros, não faz sentido abrir uma linha de ruptura entre o senso comum e o conhecimento científico e filosófico. Em vez de ruptura, melhor é falar de progressão. É o próprio K. Popper a discordar daqueles que “consideram evidente que os filósofos constituem uma classe especial de indivíduos e que a filosofia deve ser encarada como o seu domínio específico”. 2 “Adiante, que atrás vem gente” – permita-se-me o recurso à voz popular.

Tão importantes são as uvas e o vinho para o homem que os provérbios que este lhes modelou tinham de condensar frémitos de sabedoria, de uma sageza por vezes impressionante. O homem, o homem anónimo, numa palavra, o povo: ao vibrar-lhe o espírito ante uma experiência profunda, ganha um impensável poder criador, cria, contra a opinião de teóricos como Rodney Gallope, que diz assim: “O povo não cria: apenas reproduz. Plagia, assimila, adapta e muitas vezes deforma motivos e temas quase invariavelmente originários de esferas sociais mais elevadas”. 3 Não me parece que isso seja verdade nem quanto aos provérbios, nem mesmo quanto à música popular a que ele especialmente se refere. De alguns provérbios sabe-se-lhes a origem individual e “elevada” (casos de Salomão e de Confúcio), mas só de alguns. Também não custa a admitir que eles fossem pela primeira vez enunciados para uma só pessoa que todavia se baseou no que ouviu, em conjunto com o que sentiu, sendo-lhes posteriormente a enunciação modificada e aperfeiçoada, ao sabor das condições histórico-sociais. Não esquecer que a transmissão por via oral propicia o aparecimento de alterações e variantes.

E complete-se a nossa lista, chamando a atenção para o seu conteúdo ético, carácter normativo, poder de persuasão, relativamente às atitudes a assumir e à causa e previsão de fenómenos, conceito unificador de condutas, sentido crítico, quando não jocoso, e apelo ao comedimento:

  • Vinho e amigo, o mais antigo.
  • Oliveira a do meu avô, figueira a do meu pai e vinha a que eu puser.
  • Entra o beber, sai o saber.
  • Agosto, debulhar; Setembro, vindimar.
  • Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que salte aos olhos.
  • Para boas colheitas pede bom tempo a Deus, pelas têmporas do S. Mateus.
  • Passar como cão por vinha vindimada.
  • Quem poda tardio e semeia temporão tem vinho e pão.
  • Podar em Março é ser madraço.
  • Podar em Março ou no folhato.
  • Por casa nem por vinha, não cases com mulher parida.
  • Depois das sopas, molham.se as bocas.
  • Pela Santa Marinha, vai ver a tua vinha; como achares será a vindima.
  • Pelo S. Matias, começam as exertias.
  • Porco fresco e vinho novo: cristão morto.
  • Quando Maio chegar, é preciso enxofrar.
  • Quem bebe e canta seu mal espanta.
  • Quem não podar até Março vindima no regaço.
  • Quem planta no Outono leva um ano de abono.
  • Aquele que sobre salada não bebe não sabe o que perde.
  • É rainha a galinha que põe os ovos na vindima.
  • Poda curta: vindima longa.
  • Sábado a chover e bêbados a beber ninguém os pode vencer.
  • Salada bem salgada, pouco vinagre e bem azeitada.
  • Quem quiser a vinha velha renovada pode-a enfolhada.
  • Gota a gota, o tonel se esgota.
  • Tonel mal lavado: vinho estragado.
  • Velho: vinho, ouro e conselho; novo: moça, hortaliça e ovo.
  • Vento de Março e chuva de Abril: vinho a florir.
  • Vinho e boa cepa e filha de boa mãe.
  • Vinho branco de manhã e, à tarde, tinto dão bom sangue.
  • Vinha entre vinhas; casa entre vizinhas.
  • Vinha que rebenta em Abril dá pouco vinho para o barril.
  • Vinho turvo e pão quente são inimigos da gente.
  • Vinho que baste, carne que farte e pão que sobre e seja eu pobre.
  • Vinho que nasce em Maio é para o gaio; se nasce em Abril, vai ao funil; se nasce em Março, fica no regaço.
  • Tocar os arcos a alguém.
  • Ter uma aduela partida.
  • Quem não anda com cestos na vindima tem pouco amor à vinha.
  • Trabalhar com mulheres e beber por cabaça. 4

De notar que não são propriamente provérbios os ditos como “tocar os arcos a alguém”, mas incluem-se pela relação de continuidade que com eles estabelecem.

Este texto, que aqui se reproduz na íntegra, foi originalmente publicado em três partes no jornal O Público e posteriormente compilado em Tradições Populares II.

  1. Karl Popper, Em busca de um mundo melhor, Ed. Fragmentos, vide pp. 157-170
  2. Karl Popper, Em busca de um mundo melhor, Ed. Fragmentos, vide pp. 157-170
  3. Rodney Gallope, Cantares do povo português, Tipografia Anuário Comercial, Lisboa, p. 12
  4. Este ditado pressupõe a superioridade física masculina e faz lembrar o italiano “dolce farniente” (como é doce não fazer nada, mandriar), mas significa directamente que o homem vê com agrado o trabalho feito na companhia ideal da mulher e do vinho.
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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