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A serração da velha por Joaquim Pedro de Aragão (1802-1880). Litografia (1829-1852) da coleção da BNP.

É um costume já muito antigo de apupo às mulheres idosas, próprio de quarta-feira da terceira semana da Quaresma. Em Horta de literatura de cordel 1, Mário Cesariny recolhe três interessantes textos em verso, um sem data e os outros de 1786 e 1806, sobre este costume alfacinha. Num dos textos, de que é autor Francisco Mariano do Advento, relata-se que um dos brincalhões finge de velha a fazer um discurso trocista, sendo a seguir introduzido, simuladamente, num cortiço e levado a serrar. O “sacrifício”, porém, não se consuma, pois, dado certo sinal, chicotes e bofetadas retinem no ajuntamento, indo finalmente os autores da função parar ao Limoeiro, onde até “mulheres se acharam, sem licença dos maridos”.

O jogo dramático generalizou-se no país, traz as marcas das cantigas de escárnio e de maldizer dos tempos trovadorescos e constitui um brinco trocista e galhofeiro em desfavor das velhas estéreis a que, em certos casos e pitorescamente, se ligam bruxedos e maldades.

Em Afife chamam-lhe Serração da Belha ou Serra-a-Belha. À noite, forma-se um cortejo no Largo do Cruzeiro, indo à frente a Belha (manequim com uma armação de arame, papel de cor e lâmpadas dentro) bem erguida por um folião e, atrás, muita gente, alguma dela com triclitraques (matracas). Do lugar da Gateira aparece outro desfile com a respectiva Belha, sendo uso atirarem-se mutuamente terroadas, numa tentativa de danificar a Belha contrária. Um dia, uma câmara de televisão ficou mesmo cheia de lama. A regra é a alegria geral, sendo raros os casos de excesso.

No lugar da Guimbra (Rebordosa, Paredes) a Serragem da Velha tem atingido, desde 1975, grande pompa, chegando os rapazes a transportar um caixão de sete metros de comprimento, onde se imagina a velha, num luzido cortejo de carros alegóricos. O alvo das sátiras não são apenas as velhas e solteironas, mas ainda as mulheres de mau porte, como se vê nesta quadra:

Cobiçar homem alheio
é um pecado mortal.
Mais pecado é se ele é feio,
muito velho e cheira mal.

Na crítica mordaz às solteironas e às idosas visa-se a infecundidade, num alarido estrepitoso que coincide com o fim do Inverno e a chegada da Primavera. Depois de dar a volta pela freguesia, o visto cortejo trepa a um monte onde, após as deixas, são consumidos em grande fogueira os despojos da festa. Segue-se pela noite dentro a presuntada e o tintol. Na Guimbra, a tradição requintou-se e raia já a intenção turística.

Noutros pontos do país, durante as surriadas junto das casas das velhas, serra-se um cortiço (ou finge serrar-se, raspando nele um pau — Macedo de Cavaleiros) e queima-se ou enterra-se, depois. Por vezes, lê-se o testamento da velha.

Há lugares em que o costume é o de o rapazio percorrer as ruas, em grande alarido, a tocar em latas velhas, com paragem à porta de uma ou outra idosa mais rabugenta, gritando-se ditos como este: “Ó minha avozinha, dê-me um rabinho de sardinha.” Em Aboadela (Amarante) canta-se assim:

Serra, serrinha,
serra, se não,
a velha está morta,
venha o caixão.

Em Torres Vedras é da tradição os putos divertirem-se a recolher pedaços de telha velha, quebrando-os nas soleiras das portas, quando não nestas.

Em Elvas e certas zonas de Guimarães, Porto, Lisboa em Turquel, conta C. Lopes Cardoso, os manifestantes vão ao ponto de provocar os que assistem, mimosear-os com pauladas.

Em Abambres (Vila Real) serra-se a velha mais idosa, ao som de latas, panelas e tachos velhos, cantarolando:

Serra-se a velha.
Quem será ela?
É uma carrancuda
que está dentro da panela.

Serragem da Velha é a designação utilizada em muitos lugares, tal como Serrar a Velha ou Serra-a-Velha. Serrada da Belha diz-se em Tourém e Vilar de Perdizes (Montalegre), como nos conta Lourenço Fontes 2. Em Tourém, os rapazes, bem munidos de chocalhos das vacas, vão-se às portas das mulheres idosas e fazem grande barulheira até conseguirem uma “velha de palha” que, de seguida, enfiam em grandes paus, indo queimá-la fora da aldeia. Em Vilar de Perdizes, o costume junta homens e mulheres num “rito muito semelhante a um responso religioso, cantado em latim, à porta das velhas”.

Hirondino da Paixão Fernandes 3 refere-se especialmente ao destino da velha serrada, bem ilustrado em quadras como esta:

Serraremos esta belha,
esta belha chocalheira,
a ber se deita madeira
prós aros de uma peneira.

Este bem lúdico costume corresponde a jogos como os enterros do Carnaval, do Galo, do Bacalhau e do Velho, Queima de Judas, Pai da Carne e Pai da Fartura. Grimm pensa que a serração significa a expulsão da morte conotada com a esterilidade da velha e há etnólogos que a associam ao Ano Velho e até ao Inverno. Para Frazer a velha transforma-se num bode expiatório dos crimes praticados pela comunidade ao longo do ano. A. van Gennep vê neste costume, sobretudo, um rito de passagem: “O período de jejum da Quaresma é cortado ao meio por um dia gordo: inventou-se uma personagem que se cortará ao meio 4.”

A Serração da Velha também se pratica noutros países europeus como a Itália, Espanha, França, Suíça (serragem da Bagorda) e Rússia (cerimónia fúnebre de Kostrubonko). Entre nós o acto de serrar um boneco de palha ou um cortiço é menos frequente do que o de um acompanhamento ruidoso, com gritarias, toque de latas e outros objectos de que se arranque vibração e estardalhaço, acabando a Velha por ser maltratada até à destruição pelo fogo, como que diz: “o que lá vai lá vai” e “quem andou não tem pr’andar”. Ou então: “rua co empecilho”.

  1. Assírio e Alvim, Lisboa, 1983
  2. Etnografia transmontana, Montalegre, 1974
  3. O folclore de Parâmio, Bragança, 1966
  4. Ver E. Veiga de Oliveira, Festividades cíclicas em Portugal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984, pp. 36-37 e 352
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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