Sobre o Douro na manhã verde

Linha do Douro
Linha do Douro

A paisagem dilatava-se para as bandas de Cinfães, com uma revoada de casas a pousar entre o arvoredo, abrigando-se das asperezas da serra de Montemuro. Uma ponte branca sobre o Douro punha na manhã verde uma palavra quente, aberta ao Sol que estava já mais próximo de tudo e ia entrando com uma solenidade cautelosa nos caminhos que levavam a olivedos e laranjais. Jorge tudo fazia para esconjurar o incidente e a imagem de Olímpia. Quando o caminho de ferro começou a afastar-se do rio, na direcção de Marco de Canaveses, teve pena, como se acabasse de perder um amigo, e pensou que outras pessoas experimentavam o mesmo sentimento. De facto, o comboio acompanhava o rio, desde Barca de Alva, habituara-se a ele, como os olhos que se iam enchendo do seu fascínio. Abandoná-lo assim de repente era de certa forma custoso. A verdade é que a civilização não se compadece com a poesia: também os barcos rabelos tiveram de desaparecer na fúria dos interesses económicos que foram escarrando toneladas de cimento, por aí acima, as infelizmente tão necessárias barragens. Jorge, um homem de Lisboa, em Lisboa nascido, filho dum general, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, prestes a casar, um belo casamento no entender de seus pais, com um futuro risonho à sua frente, habituado ao longo de vinte e sete anos a todas as primícias da civilização mais requintada, começava a sentir o apelo das origens e, já por mais de uma vez, pensara quedar-se em Trás-os-Montes. Não faças isso, meu filho, recomendação inteligente da mãe, que era professora universitária de Antropologia e conhecia as culturas por dentro e por fora. Mas, mãe, atrevera-se a questioná-la, um dia, não acha que as culturas não podem conhecer-se? O verdadeiro conhecimento é o daquilo que se sente, que se vive. D. Cidalina ripostou logo, com o dedo subtil apontado ao queixo: não podemos confundir o conhecimento racional com a vivência afectiva; esta pode ser, é frequentemente impeditiva do verdadeiro conhecimento que só o é quando for desapaixonado. Enquanto o comboio seguia, agora dentro de um túnel, Jorge lembrava-se de ter recordado à mãe que o verbo conhecer, em francês, permitia uma melhor elucidação. Connaître significa nascer com, isto é, pensar e sentir ao ritmo vivo de uma coisa, percorrendo-a, vivendo-a desde o princípio do corpo até ao fim da alma.

excerto

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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