S. Gonçalo de Amarante

Por ter querido fugir ao Inverno, a grande festa de Amarante transferiu-se do dia de S. Gonçalo, 19 de Janeiro, para o primeiro sábado de Junho, conservando-se em Janeiro a celebração religiosa e diversificando-se em Junho os folguedos, sem esquecer a memória do santo popular. Popular a valer, especialmente invocado como casamenteiro das velhas, conforme reza longa tradição. Tal aura prodigiosa não se sabe lá muito bem quando principiou; ela, porém, tem-se mantido, com alguma apreensão das raparigas solteiras de cujas – pelo visto legítimas – queixas ficou a célebre quadra:

S. Gonçalo de Amarante,
Casamenteiro das velhas,
Por que não casais as novas?
Que mal vos fizeram elas?

Indaguei da fama e as conclusões são muito inseguras. Mas sempre me foram dizendo que uma quarentona ainda frescalhota, cujo noivo de anos não havia meio de morder o isco, sentiu um lampejo de fé no santinho e lá foi, apesar do Janeiro invernoso, ajoelhar-se em frente da imagem. Que lhe punha umas velinhas no altar, que lhe havia de rezar muito, que fazia e que acontecia, se… Trigo limpo. Nesse mesmo dia, o noivo transviado pediu-a em casamento e a notícia correu mundo. Daí outra prece versificada que até as moças, reconciliando-se com o taumaturgo, passaram também a cantarolar:

S. Gonçalo de Amarante,
Casai-me, mas depressinha:
Quero ver o meu amor
Dormir na minha caminha.

E esta ainda, que é um brilhante achado eufemístico:

S. Gonçalo de Amarante,
Casai-me, que bem podeis:
Já tenho teias de aranha
Naquilo que vós sabeis.

Santo glorioso, não há dúvida. E bem apaparicado: promessas não lhe faltam. Se os políticos descobrem… É que este santo também resolve problemas de casais desavindos.

De Amarante dizia assim, em 1887, José Augusto Vieira: “Subir em tardes de verão, rio acima, até uma ilha encantadora, cujos contornos se franjam de amiais, ou descer rio abaixo até próximo das cascatas em que a água se precipita em rolos de espuma desnevada é um espectáculo tão docemente idílico, é ver de perto uma natureza tão carinhosa, que jamais no coração se extingue a lembrança do prazer que esse passeio nos proporcionou”.

O “locus amoenus” dos românticos, uma espiritualidade verde, que já S. Gonçalo sentira no século XIII, reinado de D. Afonso III. Sentiu; e não bem para aformosear o sítio, mas, ao que leio, para evitar desastres frequentes, concebeu o projecto de uma ponte, como assegura o conde RaczyesKy, ao situá-lo “parmi les architectes du treizième siècle, pour avoir construit un pont sur le Tâmega”. Ponte que foi reconstruída em 1781 e tem bem perto, à distância de um adeus, a Igreja de S. Gonçalo, magnífico templo, cujas obras se iniciaram no século XVI, século em que (1561) o cardeal D. Henrique conseguiu licença para que se possam “rezar o ofício divino, e horas canónicas, e celebrar missa, ao bem-aventurado S. Gonçalo de Amarante, e assim da maneira que se reza e celebra de outros santos confessores”.

A lenda foi cravejando a vida deste frade da Ordem dos Pregadores com milagres como o de pescas surpreendentes e o de deixar os pés impressos nos fraguedos por onde passava. Não é assim de estranhar que bem antes do século XVI começassem as manifestações populares em honra do santo, com visitas ao seu túmulo, dando origem à conhecida romaria. Aliás, antes da autorização oficial do culto, o cardeal D. Henrique refere-se à Igreja de S. Gonçalo que “é de grande devoção; e os moradores destes reinos vão a ela continuamente em romaria; e muitos fiéis cristãos, assim naturais dos ditos reinos, como de Galiza e Castela, e outras partes”.

As actuais festas de Amarante, na primeira semana de Junho, são luzidias e ruidosas como em outros pontos do país, não faltando os condimentos do costume, desde exposições a concertos, desde as infinitas barracas de quinquilharias ao infinito foguetório. Automóveis e motorizadas que nunca mais acabam. Os mais lambareiros regressam com os sacos atropichados de doçaria, com destaque para as lérias, que as freiras de antanho tão carinhosamente confeccionavam. As mulheres apaixonadas que, às escâncaras ou à socapa, fizeram uma visita ao santinho, regressam cheiinhas de suspiros e recordações.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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