Na Idade Média praticavam-se as cavalhadas (do castelhano caballadas), torneios de cavaleiros que, com um pau ou uma cana e cavalo à desfilada, procuravam tocar em objetos suspensos de uma corda. O jogo das panelas com burro terá aí a sua origem. Espécie de imitação burlesca. Mas este jogo pode dispensar, como mais acontece, os jumentos, os bonzinhos dos plateros, e é mesmo a pé que os concorrentes tentam quebrar uma das panelas suspensas. Jogo popular que já foi muito praticado por todo o país e se vem praticando cada vez menos, embora ultimamente esteja a ser recuperado.

No Ribatejo os competidores atuam ao mesmo tempo e, como têm os olhos vendados, podem, em vez de acertar nas panelas, bater na tola de alguém. Jogo é jogo e ninguém toma o acaso como propósito. Em Trás-os-Montes atua um de cada vez e parte na mira de estilhaçar uma das panelas de barro preto, de Bisalhães ou de Vilar de Nantes, onde se encontra um galo acocado, perninhas bem atadas – não vá ele pôr-se no piro. O pior é, se em vez de acertar na panela do galo, acerta na da água: duche a contragosto.

O autor deste texto participou, em Portugal e no estrangeiro, em muitas festas de jogos populares e recorda uma em Erpeldange (Luxemburgo), em 19.06.1988, onde se reuniram centenas de emigrantes portugueses. Antes, foi a sardinhada com pimentos e broa, febras de reco bem quentinhas e vinho português (claro!); depois papinho cheio, a exibição prazenteira de forças e habilidades. Foi com lágrimas nos olhos que muitos dos nossos emigrantes praticaram ou assistiram aos jogos do Cepo, Burro, Bilros, Corda em Anel, Malhão, Reca, Perna Atada, Varas, Farinha e Panelas, este a rematar a festa, segundo o costume, pois é o mais espetacular. Os portugueses do Luxemburgo sabem que recordar é viver e, por isso, afundava-se-lhe nos olhos um passado que os comovia. Ora o jogo das Panelas Suspensas é o mais espetacular, é bonito, mas também o mais perigoso para quem assiste e vai com o nariz muito lá para diante, quer dizer, para junto do jogador que leva o aléu, um fueiro de respeito na mão. Uma aluna da Escola do Magistério Primário de Vila Real, escola que, felizmente, ao tempo ainda existia, tanto se enfrenisou com os lances que se abeirou de um poste, onde estava presa a corda das panelas, e sem tir-te nem guar-te apanhou com o fueiro na testa (fueiro não: aléu que é palavra mais guapa). Resultado: um lanho a sangrar e seis pontos no hospital. Aqui fica o aviso.

O Jogo das Panelas Suspensas é todavia muito belo. E filosófico, nem mais!

Jogo das panelas suspensas
Jogo das panelas suspensas (do espólio do autor, s/ data)

O jogador que caminha às escuras e de pau em riste para quebrar a panela do galo é bem o símbolo do homo viator que, como diz Rilke, tem os olhos “invertidos” e está “sempre na atitude de alguém que parte”. Valha-nos o sermos firmes e resolutos, segundo a máxima cartesiana.

O jogador que caminha às escuras e de pau em riste para quebrar a panela do galo é bem o símbolo do homo viator que, como diz Rilke, tem os olhos “invertidos” e está “sempre na atitude de alguém que parte”. Valha-nos o sermos firmes e resolutos, segundo a máxima cartesiana.

Bom, vamos às regras do jogo das Panelas com Burro, informando que elas se mantêm para o jogador que caminha pelo seu pé, descontando naturalmente o que se relaciona com o auxílio do simpático animal:

1. Cada concorrente faz-se acompanhar de um burro que deve montar.

2. Suspensas de uma corda haverá três panelas: uma com água, outra com terra ou farelo e uma outra com um galo. Só o júri no entanto conhece o conteúdo das panelas.

3. A linha de partida dos concorrentes, a cerca de doze metros das panelas, é indicada pelo júri.

4. Cada concorrente terá os olhos vendados e terá de partir uma das panelas, com o burro a trote. A atuação é individual e por ordem de inscrição.

5. O aléu para quebrar as panelas será igual para todos.

6. Vence o que conseguir partir a panela do galo.

De referir que no jogo a pé o concorrente é volteado cinco vezes, antes de partir, a fim de o desorientar e obrigar a usar o sentido de orientação, o que não raro, devido aos descaminhos, provoca o bom humor do público e também indicações de rumo, por palavras e outros sinais sonoros que devem ser desaconselhados, os quais todavia, sendo muitos, se anulam mutuamente e geram alegremente apupos e risos.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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