Compasso de Páscoa
Compasso de Páscoa. Fonte: Querer Muito

Manuel Vieira Dinis escreveu um livro carinhoso sobre as tradições de Paços de Ferreira. 1 No capítulo dedicado às tradições pascais começa assim: “A quadra da Páscoa, com o seu domingo iluminado é, para as aldeias deste Douro quase minhotinho, a mais festiva e bela do ano”. E pouco depois cita o Livro de usos e costumes de Eiriz, de 1680:

”Ha obrigação & costume de os Juizes do Subsino hire com a sua crux de pratta & Compasso com os R. dos Abb.es em dia de Páscoa”.

O Compasso de Paços de Ferreira não difere muito do de outras localidades onde ele se realiza. Há uns bons anos a esta parte, porém, são muitos os lugares que não têm o luzido e animado cortejo no domingo da Ressurreição, devido à falta de sacerdotes, circunstância que leva os párocos a transferi-lo para o domingo seguinte e até para o ulterior, designados respectivamente de Pascoela e, em alguns lados, de Pascoelo. Embora, para evitar alguns descontentamentos pela transferência, as paróquias se tenham socorrido, por vezes, de seminaristas e outras pessoas mais directamente ligadas aos serviços religiosos, a fim de presidirem à função.

Se o domingo é soalheiro, a festa é mais animada, sendo muitos os lugares, sobretudo aldeias e pequenas vilas, em que as ruas se enchem de moradores e familiares em férias. E lugares há onde se aproveitam os largos, já visitados ou em tempo de espera, para o jogo da cabaça ou cabacinha, bizorro ou panela de barro que, em roda larga, os festeiros atiram uns para os outros, numa alegria expansiva.

Fala Manuel Vieira Dinis de foguetes e bandas de música, casinhas humildes com banhos de cal, tapetes de murta e espadanas a ligarem entradas de moradias, desenhos de flores pelo chão, colchas de seda nas sacadas, “tudo varridinho, um amor”. O compasso sai de manhã, cedinho, o estrondo dos foguetes a misturar-se com o repique dos sinos. ”O pequeno almoço é servido em casa dum paroquiano”. E Manuel Vieira Dinis destaca:

“Na Trindade e Sobrão (Meixomil), no Carvalho (Frazão), em Vilar (Seroa), na sede de Freamunde, os ’compassos’ costumam atrair grande concurso de gente, assim como em Cô, onde a mocidade manda queimar muito fogo”. E em nota relativa a Cô: “No final, vinte e tantos rapazes ajoelham em linha para beijar a Cruz do Senhor e receber a benção do Rev. P. Ramiro Neves, considerado entomólogo”.

Compasso de Páscoa
Compasso de Páscoa. Fonte: Querer Muito

Fala Manuel Vieira Dinis de foguetes e bandas de música, casinhas humildes com banhos de cal, tapetes de murta e espadanas a ligarem entradas de moradias, desenhos de flores pelo chão, colchas de seda nas sacadas, “tudo varridinho, um amor”.

Por via de regra, na visita do Senhor às casas (algumas há com as portas fechadas) observa-se o seguinte: no melhor aposento, alindado a gosto, encontram-se o núcleo familiar e alguns parentes e amigos, aguardando o toque próximo da campainha, altura em que fazem uma roda; entra primeiro o homem da cruz, acompanhado dos acólitos com tochas acesas, dizendo: aleluia, aleluia; segue-se o sacerdote (ou quem o substitui), que tem ao lado alguém que transporta a caldeirinha da água benta; a cruz é dada a beijar aos presentes, a começar pelos donos da casa; e finalmente o sacerdote, aspergindo o ambiente, dá as boas-festas, pronunciando uma fórmula que pode ser esta ou outra semelhante: “Cristo ressuscitou. Aleluia, aleluia. Boas-Festas. O Senhor abençoe esta casa e todos quantos nela moram. Aleluia.” Então o homem que recolhe as ofertas dirige-se à mesa onde normalmente se encontra um envelope com uma determinada quantia em dinheiro e mete-a numa sacola.

Nas casas de famílias abastadas ou onde os donos primam em retribuir a visita de uma forma especial, os presentes, com o padre em evidência, são convidados a tomarem “qualquer coisa”. E casas há onde as mesas se apresentam ajoujadas de comes e bebes distinguindo-se a doçaria e o vinho do Porto. Às crianças que, em muitos sítios, são dadas a acompanhar o cortejo, com o fito nas guloseimas, alguém da casa distribui, à porta, rebuçados ou outras lambisquices.

Quanto a Paços de Ferreira, Vieira Dinis destaca pormenores que não cabem naturalmente neste texto. Mas um desses pormenores quero eu referir: “Em várias residências de Meixomil, é fácil encontrar nas mesas da Páscoa uma laranja com uma peça (moeda) espetada ao alto.” Também na aldeia em que nasci era assim em todas as casas – ainda é, nalgumas. Como eu me lembro doutros tempos! A minha avó já sabia: quando o sacristão levasse a moeda, a laranja era para mim. Oh Páscoa! “Minha aldeia na Páscoa… Infância, mês de Abril! / Manhã primaveril!”, como disse Teixeira de Pascoais.

  1. Manuel Vieira Dinis. Etnografia de Paços de Ferreira. Porto: AJHLP, Câmara Municipal de Paços de Ferreira, 1984
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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