Teatro popular tradicional

Jogo fisionómico, jogo de luzes, jogo de sombras, jogo cénico… No palco, o teatro é jogo. Mais do que na expressão literária.

O autor literário quando escreve joga na mensagem e na sua forma, fazendo ainda jogar entre si os agentes da acção e os ingredientes técnicos. O código ludencial aplica-se a toda a linguagem literária, mas a encenação e a representação no palco prolongam e diversificam o jogo.

Escreveu acertadamente Bertold Brecht:

A função do teatro, como a das restantes artes, consiste sempre em divertir. Esta função confere-lhe sempre a sua especial dignidade. Não precisa de outro requisito que não seja o de divertir; mas, sendo assim, este é-lhe absolutamente imprescindível. O teatro não deve propor-se o objectivo de ensinar ou de ensinar coisas mais úteis que o mero facto de mover-se prazenteiramente, tanto corporal como espiritualmente. 1

O primeiro objectivo do jogo é o de divertir, embora se lhe possam acrescentar outros, como o interesse económico e a fama. Para haver jogo, porém, o prazer é “absolutamente imprescindível”. Os elementos miméticos e conflitivos, sem os quais o teatro deixa de o ser, definem a estrutura fundamental do jogo, através de uma actividade interessante. Isto é válido para todo o teatro autêntico, seja o de Sófocles, o de Gil Vicente e o do próprio Brecht. O jogo é produzido pela busca de prazer que no entanto admite finalidades didácticas suplementares: a análise social, por exemplo, no teatro brechtiano.

E no teatro popular tradicional? Também.

Auto da paixão, Vilar de Perdizes, 1982
Auto da paixão, Vilar de Perdizes, 1982 (colecção do autor)

Os autos sagrados da Idade Média radicam-se na tendência humana para o jogo teatral e surgem ainda da necessidade de tornar mais impressivos os ditames e os dogmas da religião. Mais impressivos através de um espectáculo agradável. Mas, estando em causa uma crença religiosa, o objectivo lúdico pode ficar subalternizado. Há quem fique mais edificado e instruído com a pregação de um auto que com a de um púlpito. O jogo atenua-se ou desaparece na razão inversa do prazer exclusivo; tal como no teatro de agitação e propaganda.

O Acto da Primavera, que é um auto da Paixão de Cristo (filmado por Manoel de Oliveira na aldeia da Curalha (Chaves), é jogo enquanto representação escrita ou oral (primeiro nível), enquanto encenação dramática (segundo nível), enquanto filme (terceiro nível) e enquanto visto por uma assistência (quarto nível). Mas a fidelidade à história e a eventual adesão mística de um actor ou de um espectador contrariam a ludicidade total.

  1. in O pequeno órganon (1949)
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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