Festa das fogaceiras

Festa das fogaceiras
Festa das fogaceiras

Em 1749 e 1753 não se cumpriu a promessa dos feirenses ao Mártir S. Sebastião. Tanto bastou, reza a tradição, para que a peste voltasse a terras de Santa Maria da Feira.

O carácter lúdico da festa e procissão das Fogaceiras, em honra de S. Sebastião, prende-se à evocação mítica em que a luta entre o bem e o mal, representados respectivamente pelo santo e pela peste, terminou com a vitória daquele. Do prémio fazem parte as saborosas fogaças, boroas de pão doce, que fazem lembrar a crença, já muito antiga e comum a numerosos povos primitivos, de que os deuses são aplacados na sua ira pelo sacrifício de animais e oferta dos melhores produtos da terra, bem como a de que os mortos precisam de manjares para as viagens além-túmulo e ainda nas comemorações cíclicas em que são evocados, como se as suas almas carecessem de alimento a fim de resistirem com êxito às jornadas da eternidade. Estes rituais ganharam os favores do povo e o mártir cristão, tão célebre pelas setas cravadas no corpo jovem, celebrizou-se ao suscitar a devoção de que ele era o melhor advogado celestial contra a fome, a peste e a guerra, flagelos de ontem e de hoje. Ora, uma vez contratado, o prémio torna-se devido, como em todas as tradições míticas do género, de contrário uma das forças em competição, o santo, neste caso, abandona a tarefa e o adversário triunfa. Repare-se no simbolismo da fogaça, depois de abençoada: cumprimento do voto expresso e alimento para o corpo e para o espírito.

Diz-me o vereador do pelouro do fomento, José Manuel Leão, do Município de Santa Maria da Feira, que a Festa das Fogaceiras nos aparece “datada de 1505, altura em que o país foi fustigado por uma ‘epidemia brava e cruel’, a peste. Então, os Condes do Castelo e da Feira, ramo nobre criado em 14 de Janeiro de 1452, apelaram ao Mártir São Sebastião para que acabasse com o morticínio dos feirenses, prometendo-lhe a realização de uma festa anual, onde o voto seria a fogaça”. De salientar neste apelo-promessa o aval feirense que lhe veio a ser dado. É que em 1700 extingue-se o Condado do Castelo e da Feira, por falta de descendência, passando os seus domínios para a Casa do Infantado, mas, após um período morto de quatro anos, que se compreende, a festa veio a ser retomada por conta dos “senhores das Terras de Santa Maria da Feira, habitantes do paço intramuros do Castelo”. O contrato era reconhecido como válido, por se julgar ter ele sido fechado por quem de direito. Tempos em que a nobreza capitaneava terras e mentes e que a tradição acaba hoje, ainda que por via de um costume arreigado afectivamente, por respeitar com todo o gosto. Festa é festa e quem não a quiser que se ponha a milhas.

“Verificou-se entretanto novo surto de peste”, por naqueles quatro anos, de 1749 a 1753, a festa ter ficado na gaveta. Por alvará de 30 de Julho desse último ano, “o infante D. Pedro, irmão de D. João V, determinou à Câmara Municipal que assumisse definitivamente a realização da Festa das Fogaceiras, para o que dispenderia 30.000 réis”. Determinação aliás “justificada com a vontade do povo e a existência ’imemorial’ do voto”. A partir da implantação da República (1910), a responsabilidade pela manutenção do costume passou para as autoridades civis, “a título individual”, e para a Santa Casa da Misericórdia, conservando-se a data festiva de 20 de Janeiro, o dia de S. Sebastião em toda a cristandade. Até que, em 1912, a autarquia feirense deliberou que esse dia fosse feriado municipal, o que foi ratificado mais recentemente pelo decreto 39513, de 19/01/1954. Entretanto, em 15/07/1939, a Câmara Municipal reassumiu o compromisso das festividades de que se destacam dois traços essenciais: “missa solene, com sermão, precedida da benção das fogaças, no Convento dos Lóios ou Igreja Matriz; e procissão que percorre algumas ruas da sede do Concelho; procissão que saiu primeiro do Paço Condal intramuros do Castelo, mais tarde da Igreja da Misericórdia e hoje da Igreja Matriz”.

Com a República introduziu-se uma novidade, com intenção, ao que parece, de atenuar alguma irracionalidade sentimental ou, pelo menos, vincar a separação entre o Estado e a Igreja, quanto aos poderes e suas manifestações: “a formação de um cortejo cívico” – diz J. M. Leão – “a partir dos Paços do Concelho e a caminho da Igreja Matriz, antes da Missa Solene, onde se incorporam as fogaceiras, autoridades políticas, administrativas, judiciais e militares, e ainda personalidades de relevo na vida municipal; cortejo este que é recebido formalmente à porta da igreja pelo pároco residente”.

A procissão religiosa é depois, a meio da tarde, com vasta representação civil e de cada uma das 31 freguesias do concelho, numa expressão álacre e exuberante de simbologia cultural e religiosa, onde não falta a bandeira da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, do Rio de Janeiro.
De mencionar ainda a Feira dos Vinte, no mesmo dia, em cuja noite se realiza um espectáculo de variedades onde sobressai naturalmente a “Canção da Fogaceira”, já de 1942, com música de Paulo de Sá e letra de Carlos Morais e que começa assim:

Fogaceira linda e nova,
Deixa-me tirar a prova
Duma fogaça das tuas;
Vendendo-as assim a esmo,
São pedaços de ti mesmo
que vendes por essas ruas!

As fogaceiras são hoje um dos maiores atractivos da festa. Crianças “vestidas e calçadas de branco, cintadas com faixas coloridas, provenientes de todo o concelho, que transportam à cabeça as três fogaças grandes do voto, três velas, e fogaças mais pequenas, todas encimadas por papel-prata de diferentes colorações e recortado com perfis do Castelo, e ainda uma miniatura deste monumento, símbolo histórico do município”. As fogaças do voto, dantes oferecidas aos pobres em “mandados” (fatias), são hoje entregues a autoridades religiosas, políticas e militares.

E aí está, leitores, uma bem genuína e formosa tradição popular portuguesa.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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