O homem que fugiu com o rio às costas

Nesta aldeia ainda vivem
algumas pessoas que
ao olharem para trás
se codificam nas crenças
insolúveis como areias
que umas sob as outras ficam.

Feiticeiras continuam
a dançar na encruzilhada,
algumas com dentes sãos
pilhados a moribundos.
Aqui havia um moinho,
ali um lagar de xisto,
naquele ramo de freixo
um pescador se enforcara.
Sexta-feira, dia 13,
sexta-feira, dia 13
– é assim todos os dias.

Que puta de vida esta!
– disse-lhe um dia o marido
que voou de monte a monte,
levando às costas o rio.
Ninguém diga que está bem
enquanto se desoprime.
Deixou-lhe um filho ranhoso,
outro ainda na barriga.
Quem não tem mais que deixar
a isso ao menos se obriga.

Um juiz de mini-saia
queima em Lisboa as pestanas
na pira da Casa Pia.
E em Machu-Pichu os astros
entranhavam-se na pele
dos que erguiam casas altas

para a queda ser propícia
como na Ilha da Páscoa:
reparai nos monumentos
que os homens alevantaram
tão à sua semelhança
de tempo fora de tempo.
Pablo Neruda a cantar
nas redondilhas de Lorca.

E do Cachão da Valeira
voam séculos ardidos
dos barcos desmantelados
sobre ossos remanescentes,
até do Barão de Forrester.
Sobrevoam os milhafres
a memória dos que partem
na memória dos que ficam
– isto anda tudo ligado.

Olha o mendigo ceguinho:
por dez réis de mel coado
põe-se a cantar numa esquina
a velha sempre menina,
mas que fado!, mas que fado!
Dona Antónia Ferreirinha
a ressuscitar dos mortos.

Tiazinha, o seu marido
virá daqui a cem anos
de enganos e desenganos,
virá um dia, virá
e trará de volta o rio
que tanto levou consigo.

in O homem que fugiu com o rio às costas (livro de poemas inédito, 2007)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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