Certos órgãos do poder, não só em Portugal, cultivam a superficialidade porque ela, sendo o espaço imediato, se converte facilmente num meio de promoção. O que lhes importa é a acção vistosa e concordante com as tendências do gosto dos espectadores, o qual é na generalidade o gosto para esquecer o quotidiano, o gosto-passatempo. Os espectadores por definição não participam no processo, pois são o alvo a atingir, moldáveis à capacidade de investimento que não tem em conta, ou antes, evita a todo o custo uma verdadeira “inscrição“ (conceito novo de José Gil) psicossocial que lhes abriria corredores de ventilação e um agir expansivo.

Nos últimos meses que precederam as autárquicas algumas Câmaras deram-se a organizar passeios, estrada fora ou rio acima para (aparentemente) os idosos necessitados dos respectivos concelhos, não só às dezenas mas até às centenas, o que dá mais nas vistas e atrai no tempo visado que é o acto eleitoral. Noutras circunstâncias, desde que os idosos fossem mesmo idosos e carenciados, mormente os que experimentam o gosto amargo da solidão, o caso não suscitara reparos, embora houvesse outras necessidades primárias a merecerem a atenção das autarquias e através delas. Um passeio turístico no entanto, com sorrisinhos-boízes pelo meio, atinge favoravelmente o ego dos contemplados, dando-lhes a ilusão de que nem só os ricos podem usar gravata por direito próprio. Vale mais parecer rico uma hora do que pobre toda a vida. Ainda que na hora do sufrágio muitos foram os que morderam o isco e cagaram no anzol.

Uma reflexão destas não compreende todos os autarcas por igual entre presidentes, vereadores e membros de juntas: há de facto os bem intencionados, como há os que procedem com tal naturalidade que julgam estar na maior das inocências, visto que são inocentes por hábito, escapando-lhes ou não sabendo manipular os cordelinhos mais eficazes – são esses os que se encontram na política por inércia e abundam em toda a parte, infelizmente. Outros, assumindo a política como profissão que não é, que democraticamente não pode ser, tomem as decisões que tomarem, nunca as tomam sem primeiro olharem para o umbigo – carreiristas, de olho vivo, a olharem sempre para à frente, raramente para o lado, com receio de interferências. Ora numa autarquia, seja ela qual for – e antes de chegar o momento decisivo da regionalização, como a nossa, de Trás-os-Montes e Alto Douro, – nenhum plano ou actividade deve assumir-se ao arrepio da sua inscrição no real comunitário, tanto quanto possível atentos ao contexto regional, a menos que duma autarquia não se espere mais do que melhorar rodovias, abastecimento de água e recolha de lixo, o que não é bem assim.

Não se trata de favorecer estudos sobre antropologia cultural, teoria da cultura ou culturologia (…) mas de partilhar as raízes da nossa cultura, as nossas tradições ainda vivas em muitos domínios, isto é, a cultura comunitária ou etnológica (…) e que deve ser o pano de fundo de todas as actividades e espectáculos culturais, ou antes, socioculturais.

Não se trata de favorecer estudos sobre antropologia cultural, teoria da cultura ou culturologia, o que, de quando em quando e em linguagem acessível, poderia e deveria acontecer; mas de partilhar as raízes da nossa cultura, as nossas tradições ainda vivas em muitos domínios, isto é, a cultura comunitária ou etnológica que pode muito bem considerar-se um ramo da antropologia e que deve ser o pano de fundo de todas as actividades e espectáculos culturais, ou antes, socioculturais. É conveniente acentuar esta observação, dado que a maior parte das novidades deste género se fica pelo espectáculo dito cultural que é importante como divertimento, sem dele resultar, a não ser para alguns, um mergulho na vida real, uma revitalização. Pior quando o espectáculo é pura e simplesmente importado, sem propiciar a comparação, o que existe de próprio e de comum, numa palavra, a conscientificação.

O jogo autárquico é inevitável neste mundo em que todos somos obrigados a ter um comportamento lúdico, a defrontar adversários ocasionais. Todavia ao jogo autárquico é preciso conhecer-lhe as regras, praticá-lo bem, técnica e moralmente. E não esquecer que o fim do tempo regulamentar chega depressa.

in Semanário Transmontano (18-11-2005)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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